20.2.06

II

O sol escondia-se por detrás das tuas costas quando fixei em ti os meus olhos. Parecia, para quem não nos conhecesse, que estavas zangada com os meus olhos nesse dia. Não os olhaste, como costumas fazer sempre que desvias a retina do sol. Em vez disso precipitaste-os para o gato que se pousava no cadeirão do canto da nossa sala. A sala estava escura como os teus olhos o estavam. Neles, hoje, não vi mais do que a escuridão com que embrulhaste o «não» de resposta ao meu olhar. Um «não» pronunciado pelo abrir e fechar sucessivo das pestanas, num código morse só nosso. É certo que os meus olhos não perguntaram da maneira mais delicada, mais afável. Antes o fizeram com rispidez, com o mesmo desdém e desconfiança premonitória com que o gato se deitou, na superior ignorância do que estavamos a fazer. Sinto que eles se justificam por isso dentro de mim, quando me aperta o peito e me inundam as pálpebras, dizendo que por reflexo de auto-defesa anteciparam a resposta que lhes deste. Acho que também tu o sabias, mas insistes na teimosia de os desafiar, de não oferecer o teu braço para que eles o torçam de lágrimas, de não deixar grátis o argumento de que também tu não vives sem eles.
O gato continua a estender-se sobre o canto esquerdo e escuro, enchendo toda a sala, toda a casa, como os meus olhos se estendiam há pouco na procura dos teus. Como foge das minhas mãos o poder de fazer com que a minha voz seja ouvida dentro de ti. Como nos escapa o gato quando o tentamos deter. É como me foge o chão sobre os pés, sobre os sentimentos, quando tento agarrar os teus olhos. De braços sanguíneos, ouvidos térreos, colados ao chão em tacos severos da madeira idosa e pisada da sala, esqueço-me de como acordavamos nos dias verdes. Dias 'crianças' em que «futurizavamos» rasgar o papel de embrulho verde dessas manhãs, dividir a criança que nasceria da partilha de uma existência "a dois". Como que desembrulhando a felicidade "a quatro mãos", acreditanto com todas as células na verosimilhança do acto. Ainda que não legitimado por ti, pelas tuas mãos, vivo na esperança de conseguir encontrar os teus olhos e reflectir neles a tua carícia, num espelho perfeito e branco. Um branco que conseguirá esconder as inatas imperfeições tanto da carícia como do reflexo. Vivo na tentativa de que me olhes como quem diz que quer ser olhada. Que quer ser amada.
Sobrevivo.

jtf

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