28.2.06

III

Não sei se por obra de um acaso previsto se por uma construção irritantemente premeditada, sempre achei que gostavas de ler tudo aquilo que ia escrevendo. Até alimentei incessante e carinhosamente o bicho do orgulho que vivia dentro do meu estômago. Nem que fosse um rabisco num papel, pedaço de branco, disforme e desprezível. Até se apenas o comando que exerci na caneta sobre o papel fosse, tão-somente, para não me esquecer de pagar o telefone. Mas achava, e acho ainda, que o sonho comandava remotamente o sentimento de que gostavas de estar comigo apenas lendo as minhas letras. Acredito que essa é a melhor maneira de estar com alguém. Numa espécie de eliminação subliminar das desvantagens da convivência física, carnal, e de exaltação da alma utópica de sentir que se está com alguém mesmo que esse alguém não o saiba, nem o sinta com os olhos. Sinto melhor, mais aconchegadamente, o amor que tenho por ti se não estiveres comigo. Porque tenho espaço para pensar em ti, para te imaginar como não és, para fazer de ti a ‘mulher de todos os meus sonhos’. Quando sinto a cadência da tua respiração como sopro sucessivo nas minhas costas, como companheiro do relógio, não me é possível imaginar como serias se fosses perfeita. Se fossemos perfeitos. Porque estás ali, inteira, sem ilusões, sem que me seja permitido ficcionar como serias se não fosses como és.
O poder de imaginar como seria amar-te se não fossemos humanos, se não existisse chuva, não precisassemos de respirar, de comer, até de amar. Essa é a mais divina de todas as tarefas que nos incumbiram. Imaginar. Como agora imagino como serias perfeita se não fosses minha, se não fosses humana, humanamente perfeita. Se um sem-número de coisas mundanas não existissem, não nos limitassem a imaginação. O mundo é o limite mais severo à imaginação, que sem ele seria ilimitada, seria celeste. Pode ser que um dia possa dizer que te imagino perfeita, que desenho o teu rosto com os pensamentos, que fantasio construir-te à semelhança do meu desejo. Que te construa em peças escolhidas por mim. E no fim a construção esteja à minha frente, comigo, como um pedaço de mim mesmo em matéria de gente. Que respira, que anda, que imagina como eu seria se fosse perfeito. Como um quadro acabado, limpo, com tintas e cores escolhidas pelo pintor. Mas somente pelo pintor.

jtf

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