6.3.06

IV

Gostava quando o Afonso te sorria. Eram olhos de ternura, de carinho pelas linhas que te serviam de identidade. Não o puderia confirmar, nem provar, mas sentia que esse olhar era aquilo que de mais sincero e afectuoso ele te conseguiria dar. Uns olhos em formato de presente de natal. Com embrulho e tudo. Mas muito mais preciso e aconchegante, pensava eu. Ficava horas refastelado na poltrona desse canto da sala, habitat do gato que se ia deitanto. Como as nossas conversas, para não mais acordarem. Quantos milhões de euros daria eu para que alguém me olhasse com os mesmos olhos densos com que o Afonso te olhava o corpo? - equacionava eu em silêncio, num tumulto consumido internamente. Era um olhar paternal e protector. Como se um escudo redentor te cobrisse todas as células do corpo, não de aço mas de afecto. Não visível mas latente. Numa passagem escura, dura como espadas, bem dentro de mim assusta-me o grito negro de que nunca me irás olhar como ele te olha, Joanna. Esse grito consegue calar a volúpia por alegria, que ainda possa encontrar oxigénio para viver dentro dos meus pulmões. Consegue fumar alegremente a vida que ainda habita no canto da sala, em toda a casa. Consegue calar o caminho que vamos percorrendo para que numa manhã consigamos dizer 'bom dia' com a voz da convicção. Para que o despertador que encomendámos a nós próprios consiga acordar as conversas adormecidas, dormentes. E quando esse ar se acabar? Quando o cigarro acabar? Quando o caminho se encruzilhar? Quando o despertador se esquecer de nós?
Que faremos, Joanna?


jtf

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