11.3.06

V

Naquele instante não havia percebido que aquele momento ficaria para sempre cravado na minha alma, como tatuagem perene. Quando tu, Joanna, tinhas os olhos amaciados pelo sangue em forma de laranja viva, redonda e doce, e me roubaste a metade que só tu poderias tirar-me. Como uma espécie de enóloga do amor, acreditada por mim mesmo.
Nesse dia, ao almoço, não me parecias tão feliz como normalmente. O outono da tua alma estava mais castanho do que usualmente estava. Parecia que tinhas os pensamentos congelados, os sentimentos atrofiados, paralíticos de pernas e braços. Mas nunca me teria ocorrido que os últimos fotogramas deste dia fossem pintados a um vermelho tão festivo como este o foi. Quando em voo raso, rosto redondo desenhado a compasso, olhos rectos inscritos a esquadro direitos à minha face, aterraste no meu ombro e me calaste a batida do coração, no segundo em que as palavras te saíram da boca. Senti um arrepio na veia cava superior, superiormente sensível aos sons que trocávamos. Nesse segundo o leito sanguíneo apressou-se a seguir para o ventrículo esquerdo, o mais forte para pancadas violentas, com a mesma celeridade com que a minha atenção se fidelizou na tua boca. Ainda estou a ouvir agora essas palavras. Claras, escorreitas e firmes. Como quem convictamente diz que dois e dois sempre serão quatro, mesmo que alguém o desminta. Com a mesma convicção densa, cheia, encostaste os teus lábios pequenos e sumários ao meu ouvido direito, o mais forte para sussurros convictos, que os esperava, antecipava e previa. Nesse minuto a voz saiu-te branca, sem falhas nem mudanças de entoação. Parecia que o sistema sonoro das tuas cordas vocalizava em alta fidelidade. Como sopro leve, flutuante mas continuadamente presente, insistente. Tão presente como o gato que nos ia olhando, encrostado na escuridão do seu canto. Conseguiste, sem que alguma vez o tenhas premeditado, fazer com que naquele dia eu visse finalmente o bilhete de identidade ao Amor, com data de nascimento e progenitores. Até aí nunca me tinha sido apresentado. Apenas o conhecia por catálogos distantes, remotos e profundamente fantasiosos. Nunca o tinha encarado de frente nem, muito menos, lhe tinha ouvido a voz. Finalmente percebi que nem tudo aquilo que nos possa parecer inatingível o será para sempre. Nunca antes tinha imaginado que seria possível ouvir-te, numa noite ordinária como tantas outras, dizer: «Não consigo viver sem a tua voz».

jtf

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