20.1.08

XXX

Ponto inicial, A rua dos Douradores dourava e salpicava castanhas entre fumo espigando de cones cinzentos, quase rudes, Se soubesse por que razão não respiro pacientemente, inquieto-me, coço partes do corpo sem ordem pelo impulso do nervoso, miudinho, miudinho, tão miudinho que nem consigo identifica-lo, microscópico, Se soubesse por que razão me escondo quando me olham, olho o chão e conto as pedras da calçada por forma a isolar-me, não ouvir nada nem cheirar nada, convenço-me em pisar com o pé direito todas as uniões do empedrado, O Chiado transpirava a domingo, aquele suor do domingo que transpira pelos sovacos, gente, intenso cheiro a gente, inverno sem chuva, sons de conversas sussurradas, aquela espécie de burburinho como no cinema, barulho indistinto, confuso, tão cinzento como fumo espirrando de cones de metal cinzento, Se soubesse por que razão me envolvo no cinzento das conversas alheias, Desde sempre que duvido ser quem sou,
- Já te viste ao espelho?
, é-me difícil saber quem sou, identificar-me, confiar nos contornos do queixo, na textura da barba que se acumula na curva em baixo da orelha e é o início do queixada, na cor que o cabelo faz quando exposto ao sol, no tom de pele, no desenho dos lábios ao juntarem-se,
- Já te viste ao espelho ou não?
, de forma que é difícil convencer-me a acreditar que sou quem sou, imagino ser outro, outra cara, outras mãos, outro coração até, que batesse livremente e não por impulsos de nervoso, por miudinho que seja, outra coragem, outro olhar, outro eu,
- Estás mais gordo
, e é-me tão claro que nunca fui magro, nem nunca fui gordo, na verdade nunca fui eu, olho o espelho para me pentear e pouco mais, Não gosto de estranhos, Ao pentear-me sinto pentear outro, Puseram-me este corpo a cobrir-me sem sequer que eu respingasse, não tive opinião no assunto,
- Quero os lábios mais gordos
, ou mesmo,
- Quero mais cabelo, e mais claro
, para poder passar-lhe a mão com leveza de seda, esticar as pontas, fazer rolinhos com o findar da lã, tapar a testa e a cabeça das orelhas por causa do frio,
- Quero a voz mais cheia
, daquelas vozes de gente, que enche salas, imponente como conventos, capaz de sussurrar e de beijar apenas falando,
- Já te viste ao espelho?
, de maneira que raramente me olho, ignoro-me tanto que nem dou conta de viver comigo, A rua dos Douradores continua dourando, Há castanhas que saltam, e respiro inquietamente pelo estímulo do nervoso, É-me difícil saber quem sou, confiar nas respostas do espelho, Nunca gostei de estranhos, Há dias em que acordo e me penteio e reconheço um ou outro traço de mim no meu rosto, um olhar, uma pestana mais revolta,
- e sorrio -
, enquanto isto desço para a praça do Rossio e começo a adivinhar o dentilhado do Castelo, o sol está tapado por algodões gigantes, A pouco e pouco os meus olhos se fecham lentamente, E com eles fechados esboço a imagem da minha cara em sopros de lápis, Ponto final.

jtf

1 Comments:

Blogger fábio videira santos said...

O tormento da constatação de que somos outros, do espelho que mente, deturpa, disfarça e garante esperanças vazias. No fundo, um espelho sem reflexo.

Um bom ano.
F.S.

3:14 PM  

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