6.11.06

XXI

E ao alastrar a perna para alcançar o degrau murcho na entrada do café, oiço lá dentro luzes que mugem na algazarra das festas de Santo António na Bica, numa mesa o Afonso e a Joanna entopem a fala de nadas em forma de frases misturadas com bicas curtas e adoçante, as luzes a gritar, a gritar-me,
- Fala, fala
, num grito mais intimidador que os pides dantes, mais ameaçador que os cães naquela tarde de verão há vinte anos a correr atrás da bicicleta, e eu,
- Shttt, vai-te embora
, quando alcancei o início da escada do café julguei estar noutro lugar, julguei agarrar as luzes com os dedos e apertar-lhes a gritaria com as mãos, sufocar-lhes o pescoço com as unhas compridas que os gatos têm, como navalhas na extremidade dos dedos para defender lutando o direito ao silêncio e ao sombrio, o direito, para esventrar ao meio a obrigação de falar nos cafés como os gajos normais, o direito, amordaçar o cão que ladra sem parar, que ladra nadas em matéria de frases e bicas curtas a baralhar, o direito, que me acaba a vontade de pronunciar uma única palavra que seja num lugar como este, onde as luzes gritam, sem saber do que se fala aqui, sem saber que dizer quando perguntam, direitos a mim,
- Tudo bem, Henrique?
, a relatividade da pergunta a fermentar no tímpano, a azedar de rotina na couraça do ouvido, e eu sem saber se diria,
- Está tudo, e contigo?
, indolente a pensar naquela outra tarde de verão há uns anos e dizer,
- Shttt, vai-te embora
, sem saber se deveria desprezar esta rotinazinha sovina e responder que nada está bem, que nada me faz vir aqui ouvir falas embrulhadas em nadas e em cigarros puxados à agonia da pressa,
- discutimos tanto sobre o tabaco, Joanna, tanto –
, sem saber se diria que não há nada que me faça responder a perguntas de algibeira a estalar em sorrisos técnicos, a Joanna com o cigarro infindo queimando entre dedos a dizer,
- Ainda não conheces a Teresa, pois não?
, e eu sem conhecer Teresa nenhuma, nem com vontade alguma de conhecer, com o nada a apoderar-se de mim entrando pelas pernas, sem vontade sequer para responder
- Está tudo, e contigo?
, sem unhas de gato nos dedos nem respostas na algibeira das calças, a minha avó que estava sempre com bolachinhas maria no bolso do avental pronta a beijar-me com elas, com os lábios onde só a doçura vivia solitária, julgo estar agora com ela, na casa onde os corredores são demorados e escuros como o labirinto dos sonhos, a dizer-me,
- Vai uma bolachinha filho
, e eu contente, de sorriso infindo, com a bolacha a fazer ponte entre os dedos e os beiços, foi quando a minha tia que nunca tinha visto antes veio da América que a minha avó me disse com a doçura de sempre no lábio,
- Ainda não conheces a tia Margarida, pois não?
, e eu sem reconhecer mas com vontade de conhecer, com a paz de alma que as bolachinhas maria da avó me faziam entrar pelas pernas acima, pelas mãos, pelos dedos, com vontade de responder com a doçura dos lábios dela,
- Está tudo, e consigo?
, sem luzes feiíssimas a gritar, a gritar-me alto,
- Fala, fala
, sem me intimidarem os maxilares mastigando a bolachinha, alcancei com o pé o começo da escada do café e julguei estar aqui, na casa da minha avó, da avó das bolachinhas maria, e julguei pegar nas luzes com os dedos e apertar-lhes os gritos com a força dos punhos, estrangula-las com as unhas dos gatos defendendo o silêncio e o sombrio, que me fazem lembrar as bolachinhas da avó a fazer ponte entre os dedos e os lábios, a fazer ponte entre o tudo e o nada, gritando fundo com a boca da ternura,
- Vai uma bolachinha filho
, enquanto me ladram os cães negros no peito e as luzes que gritam alto não se calam, por entre o escuro da noite que tomba.

jtf

1 Comments:

Blogger Isa Mestre said...

Mais algumas palavras, mais alguma magia para dentro de mim e mais incerteza. Onde mais serás capaz de chegar? Que botões do meu frágil coração ainda não atingiste? Porque vivem os mim todas as tuas personagens? Porque me deparo vazia em frente ao ecrã do computador quando não escreves, e não me alimentas esta fome de te ler? E não encontro respostas. Poderia dizer que é o teu talento, a tua arte de pregar o quadro e fazer dele uma obra prima, a tua magia de usar palavras que se misturam como cores numa tela de alegria. Mas não seria apenas isto, porque me sinto feliz por sentir esta incerteza de ti e de mim.
Quero ver-te chegar longe, quero ver-te brilhar, e digo-te de todo o coração, porque talvez o queira tanto para mim como o quero para ti. Com toda a alma do mundo, de quem te admira

Isa Mestre

3:41 PM  

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