2.8.06

XV

Quando os sons das folhagens escorrem vagarosos, medindo o comprimento dos ramos,
- num burburinho que chicoteia a ursa modorra, aqui dentro –
, a ânsia atravessa-me a espinha até à furtiva sala do sangue. Há indolentes tardes em que, deitado sobre sofás de angústia em molho pesado, alinho o exército de eus que me habitam os quartos da mente, cá dentro. Bem dentro. Gosto de imaginá-los como golfinhos soltos, como aves lacrimejantes em voo rasante, como cães enegrecidos pelo refugo dos dias e dos anos,
- e das almas e das gentes –
, os meus eus todos juntos, em risota esticada, Qual deles será o que gosta de ti, Joanna? O que gosta de futebol e de cerveja? O que gosta de rolexs e de ferraris? Ou o que gosta de futebol e de ferraris? Ou o que gosta de rolex e de cerveja? Respondi alto, com a voz que vomitava as dúvidas do cimo da testa, enquanto circulava o pó do café no leite quente, borbulhando,
- Não sei, acho que é uma salada-russa de todos.
, pensei eu. Convenci-me da resposta com um gole que fervia na faringe, quente. Quente,
- ganiam em brasa os capots dos carros no estacionamento espinha do Rossio –
, estava muito quente, a ferver, eu transpirava como criança joga à bola, escorria já. Resolvi esconder-me do sol, massacrante, que nem bombas em guerra ferina, ocultei-me num banco de jardim debaixo da ramagem cansada, ferida pelo refugo dos dias e dos anos,
- as folhas em ruídos sofridos, em sussurro latente zurzindo a ursa –
, uma mulher desfila em direcção ao eu que gosta de ferraris, senta-se a dois palmos, cruza a perna como nos filmes,
- com os olhos dos filmes, as mãos dos filmes, o respirar dos filmes, cadente –
, a tíbia nua como cútis de bebé verde, saia curta,
- só o necessário –
, julgo ter uns trinta anos, mero instinto, pela maneira como cruzou os membros, pelo perfume que me abafou as ventas de hálito gordo, pelo arrebatador enrugar de pele no canto exterior das vistas,
- Deve ter uns trinta e poucos.
, congemino o palpite dentro dos miolos, que iam fervilhando nas brasas do astro. Sem que o calor abrandasse, os dois palmos tornaram-se um, de um ficaram quatro dedos, até que apenas um envergonhado mindinho nos desligava as pernas. As dela cruzadas com a mestria dos trinta. Inopinadamente o calor subiu para o dobro. Tocámos as pernas, a minha esquerda na direita dela, quente, a ânsia atravessou-me as costas e entrou pela casa do sangue a dentro, quente, o exército de eus berrava como peixeira de mercado, a quente. E eu senti-me gente finalmente, útil como animal reprodutor. De branca verdade que não me agitei. Um olhar,
- ainda que cerceado pelo escuro dos óculos –
, voltou a atravessar de ânsia a espinha, como zumbido de vento nas folhagens, como transitando nas pernadas do castanheiro velho, medindo-lhe os braços, em cima. Acima. Levantou-se como torre secular, apanhou o cabelo com as duas mãos, atrás, dez dedos dançando num bailado ao ritmo do dourado da pele,
- a mesma mestria dos trinta nas mãos, sardentas de perícia –
, algemando-o num elástico preto, atrás, caminhou e esfumou-se ao longe, ao longe. Para longe. Para não mais voltar.
Ainda hoje, Joanna, volto ao Rossio, ao banco do castanheiro estafado, no embalo de voltar a encontrar o escuro daqueles teus óculos, o toque das tuas pernas de bebé esverdeado, a saia curta e o sufoco do perfume a esmurrar-me a cara. Volto na esperança de te voltar a conhecer, Joanna, de sentir a tua perna direita a beijar a minha esquerda pela primeira vez. Ainda hoje oiço o timbre das folhagens a chicotear o urso torpor que mora cá dentro, a ânsia que me atravessa a espinha até ao centro do peito. Ainda hoje alinho todos os eus que me habitam as mãos e os olhos quando me pergunto,
- Qual deles será o que gosta de ti?

jtf

1 Comments:

Blogger Isa Mestre said...

È verdade, tanto eu dentro de nós mesmo que às vezes é difícil discernir quem na verdade somos. E tu quem és? Um amante de poesia? Alguém que escreve prosa com muito talento? Quem és pequena pérola a desbravar o mundo? Ès, e isso só diria tudo. Obrigada por existires e espalhares toda a arte e talento que te vai pelo peito fora.

Um beijo

Isa Mestre

1:00 PM  

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