11.7.06

XIII

A porta castanha do quarto, embaciada de gritos, o nosso quarto, a porta que serviria de viçoso resguardo, entreaberta numa aflição de afogado, na tentativa de esconder o evidente. Tu e eu aos gritos, selva num quarto de apartamento, unhas apontadas ao nariz em defesa do que nos resta depois de tudo, depois de tudo, de tudo morrer, o respeito. Sei agora que só as tuas unhas tinham razões para apontar o meu nariz, e acusa-lo de desrespeito, de vergonha. Sei que fui cobarde, que te olhei com os olhos da mentira negra, que te toquei com as mãos letais dos cadastrados, que te amei com o corpo de assassino em pele de inocente meigo. Gritavas com a força toda, com a leoa que te vivia nos pulmões, que dormia quando tudo estava bem, que dormia quando não sabias que as idas ao café afinal não o eram, quando os fins-de-semana com os colegas da tropa afinal eram mentira, quando ficava até mais tarde no trabalho e afinal até saía às três, quando a candura em que me vestias era um negro fundo com roupa de morto. Morto, o nosso amor estava assim morto, acabado pela fadiga do engano, morto, acidentado pela seiva da cegueira, morto. A porta ainda mostrava a aflição dos gritos, agudos,
- Quem é a gaja, Henrique, quem é a gaja que andas a comer?
, e eu sei saber o que dizer, tu aos gritos, eu mergulhado numa vergonha de criança tenra, tu aos gritos, eu engolido num choro de arrependimento em lágrimas tardias, tu aos gritos, eu esmagado pela tua trituradora razão absoluta, aos gritos. Aos gritos, como mísseis ao mais cavado planalto do passado fosco, aos gritos,
- Quem é a gaja, já te disse. Quem é?
, o odor a nojo da pergunta, a encher-me os ouvidos, depois os olhos e a cabeça. O som da almofada a bater na cama,
- um timbre oco -
, no leito onde dormimos tantos anos, tantos, onde planeámos o futuro de barriga para cima e nariz esticado, onde te olhava na mentira, onde te tocava com cadastro, onde te assassinei o sonho. Sem que soubesses. Sem que desconfiasses,
- Está tudo bem.
, dizias à tua mãe ao telefone, às colegas do escritório no café das dez, ao Afonso quando vinha jantar cá a casa. Mas, por muito que eu te escondesse, que te ocultasse atrás do móvel da sala, que te calasse para baixo do tapete da entrada, estava tudo mal, muito mal. Maçã podre numa casca brilhante, luzidia. Sempre fui perito em cascas brilhantes, em encera-las, em encher-lhes a superfície de lustro vivo.
Gritavas. Arrancavas as minhas camisas do cabide, tu a chorar, espalhava-las no chão, lançavas os sapatos para o corredor com a força de leão em luta, tu a chorar, amontoavas as camisolas na cama, espetavas a escova de dentes no chão com a raiva louca das traídas, sempre a chorar. Sempre a soluçar os gritos,
- Quem é ela, quem é ela, eu conheço-a?
, nisto olho o alvoroço da rua pela janela em frente da cama,
- parece que nos momentos de tensão de selva vemos os pormenores a que nunca ligamos -
, pela janela contemplo o jardim dos baloiços, onde cravámos a infância. Cá em cima a vida em vaivéns, em balanços ao ritmo de outro baloiço. Esse jardim onde quero agora esconder-me, esconder-me dos destroços que encomendei, esconder-me e ouvir nele o centro do mundo, ouvir nele o centro da vida. Ouvi-lo bem antes que se cale.
Antes que se cale para sempre.

jtf

1 Comments:

Blogger Isa Mestre said...

Teago, sem dúvida o melhor que já li. Não sei por quanto tempo poderei manter estas palavras na perfeita pureza da veracidade pois a cada novo texto chega até mim o perfume das tuas palavras,que cada vez me tocam mais profundo, que no inicio me diziam muito mas agora me dizem imenso. E isto é quase como droga. Sim, a Literatura é uma droga, quando se experimenta jamais se pode deixar. Ainda que pudesse não queria. Acredita em mim.
Pergunto-me: Como? Como podes tocar tão profundo com coisas tão simples? E é aí que encontro todas as respostas. Sabes porquê? Porque os que vivem, sentem e honram a Literatura não precisam de palavras reboscadas para exprimir os mais puros e simples sentimentos que nos atravessam a alma. E tu és um deles. Não precisas de mundos, de palavras difíceis para provares que consultaste o dicionário. Não! Tu não precisas! Porque elas saem-te do peito, e saiem-te com um talento imenso.

Um beijo de quem te lê, sempre.

Isa Mestre

3:58 PM  

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