4.6.06

X

carta à infância.

Neste instante, desempregado de sentimentos. Agora, junto com o negro fundo, a respirar silêncios que choram comigo. As coisas estão inertes, como agarradas pela gravidade que nos puxa para o fundo. Os móveis, os livros, os sons, as portas e as janelas, os estanhos ao centro da mesa pesarosa, as rendas pendentes no varão, em cima. Tudo congelado pelo nada que nos ocupa. O nada.
- o nada que me faz pensar nisto, em ti -
Há vozes ao longe, não muito, são como passos a arrastar os calcanhares da vida para dentro da sala encalhada. Não entram. Na janela, brecha de mundo sério, vislumbra-se, pelas fendas que a cortina ainda autoriza, a escola dos pequenos. Mundo de silêncios nenhuns. Em baixo, no largo de terra castanha-clara, um pequeno gira pedais de triciclo,
- o mundo dos grandes resolvido sobre três rodas, a girar -
, três saltam a uma corda de sonhos que ainda nem sequer sabem que virão a ter, cinco escondem-se uns dos outros sem sequer saberem que é isso a vida dos adultos. De quando em vez experimenta-se o vento, leve, em granulado insistente que alivia o calor das mãos. Afasta, com dedos de bisturi, as folhas caídas do chão, mortas. Folhas que só sentimos findar na queda. Ao centro dos olhos,
- recordo os gritos do exército de pequenos ali ao fundo, na escola -
sonho com folhas a nascer para nunca cair, sonho com lâmpadas acesas noite dentro, sonho com beijos longos que nunca descansam, sonho com terras castanhas-claras com crianças sempre, sonho com pessoas a espantarem-me com a bondade alheia, sonho com gelados em noite de caldo, sonho com livros que nunca irei devorar, sonho com terras que nunca irei pisar, sonho ser Pessoa e Eça simultaneamente, sonho com ferraris à porta, sonho com o odor a batatinhas pequenas do almoço na avó,
- entra, sem portagem, o cheiro pela testa acima, como afago em aroma cheio-
, sonho com amendoins na esplanada, sonho com escolas com meninos muitos, sonho ser escritor, ver o meu nome numa capa, sonho que não haja sonhos impossíveis, sonho que voltarei à escola, com terra castanha-clara, girar os pedais ao mundo, saltar a corda dos sonhos que serão um dia, esconder-me de todos os rostos para poder dizer-te que só te quero
- não sei se entendes, Joanna -
só te quero a ti.
jtf

0 Comments:

Post a Comment

<< Home