5.5.06

VIII

Não se encontra um pouquinho que seja de esperança no tapete que presenteia a entrada da tua casa, agora só tua, Joanna. Calada, como sempre, ouves o Afonso arrepanhar-te o bicho escuro e valente que o orgulho tomou como seu dentro do peito. Fala, fala, fala-te. O ouvido já está azul de tão superlotado. Encher sacos do lixo, encher ouvidos de lixo. Resíduos gasosos de palavras, nefastos de tão fastidiosos, escuros de tão enfadonhos. Lixo em forma de letras, ditas com a convicção da gramática limpa da honestidade com que o Afonso ligava a corda direita, junto à faringe. Joanna, enches o ouvido, chega ao limite do balde, sugeres um café, não é mais do que a oportunidade refrescante de despejar o saco apinhado. Não te recordas. Não te recordas. Por mais que tentes procurar, esconde-se. Tapa-se a vontade que ainda tinhas de esticar um sorriso grande. Ajeitas o cabelo para o prender ao elástico, rabo de um cavalo assanhado, cordas de uma ponte a desabar. Ruir. Bates, com a palma aberta, no mármore duro e branco, banca de uma cozinha em que comiam duas bocas. Agora uma. Lambes os lençóis de uma cama enrodilhada por dois corpos. Agora um. Apenas metade da laranja é comida. Apenas metade do prazer que a casa sentia ao ouvir Bach o é agora. Apenas. Uma cabeça cheia de apenas por todos os lados, todos. Desmorona-se a terra que juntaste em volta do calcanhar dos pés. Enquanto a água ferve na cafeteira sobre o lume em círculo, ferve-te a imaginação no fogo laranja com que costumo atiçar as cigarrilhas de sempre. Desmaiavam pedaços voantes, cinzas sangue sobre o branco do lençol da nossa cama grande, bicicleta de um uso simples, forças conjuntas a gravar nas mãos a sentença sinto-te como minha, toda. Cheira-te na cabeça as Al capone a esvaírem-se em fumo ascendente, tão ascendente que ainda te habita os neurónios. Agora que o fumo do tabaco já não sobe pelas narinas mas desce pelo imaginário já distante. Já remoto. Agora que já discutiste, berraste, choraste lágrimas de dispensada, de traída. Já remoto. Agora que já vivo com a outra. A outra que te roubou o cheiro a fumo, fumo em forma de felicidade. Em forma de vida normal. Cheiro a vida, vida sonhada aos dezanove anos, vida montada em puzzle, em peças. A peça que tinha o meu H de Henrique escrita na face desapareceu. Fugiu. Abalou. Impludiu.
Já remoto.

jtf

0 Comments:

Post a Comment

<< Home