25.7.06

XIV

Ergueu o prédio de ossos, que era o seu, ossos brancos e curvos como peças de um puzzle em carne dura, era bem cedo, ainda nem as galinhas quebravam a mudez que coloria o azul-manhã daquela pintura,
- Não consigo acordar do sonho, não consigo, Henrique.
, dizia-lo em olhares, cravava-lo em gestos de esmero eterno. Relevos e vales em rendilhado de respirações e de suspiros. Mesmo quando caminhas, quando respiras, quando falas, quando comes, quando bebes, o sonho acompanha-te as pernas e a fala e o arroz e a água. Estás a meu lado, respiras comigo o ar dos dias, a plasticina das horas, roças o veludo das pernas nas minhas como cobras com sangue de Inca. Os olhos não abres, estão colados, não abres,
- a luz é muita, derramada –
, porque assim a luz acabaria com o laranja com que nos sonhas, o laranja fogo, o laranja ardente, espesso como a seiva dos castanheiros do parque, tão pejados de vida.
- Da nossa vida –
Sempre te encarei como coisa minha, sempre, te olhei com os óculos da posse, te toquei com as luvas da propriedade, sempre. E tu, alienavas-te no sonho, como refúgio à chuva da guerra nublada, como abrigo à desilusão crónica, à tosse antipática do cancro oculto, como transparência de fantasma descrente. A indiferença em que empacotavas o
- Sei lá. Decide tu.
, com que me brindavas os pedidos de opinião, com que me escorrias a cabeça de indiferença gritante, gigante, com que me batias na cara,
- com a luva branca da razão feroz –
, e eu sem o poder de te desmentir, sem o poder de te tirar a luva, ou de pinta-la de negro, ou até de sujar-lhe o branco. Porque sabia que a justiça te habitava a boca e a língua e os ossos. Brancos e curvados como puzzle no músculo rijo. Porque sabia que o sonho era o esconderijo dos traídos, dos atraiçoados injustamente, sem que o merecessem, sem que alguma vez o tenham pensado fazer. Soubesse eu que
- Eu não merecia, Henrique, eu não merecia, tu sabes disso.
, mas eu sem saber que palavras usar para responder a tanta bondade de língua, a tanta sinceridade acumulada de braços, a tanta alvura de mãos. De quando em vez imagino-me perfeito como tu, sem cedências ao veneno vulcânico do corpo e das saias, sem escondidos segredos de canalha camuflado. Sem invasões ao mundo dos actores sem palco. Imagino-me a sonhar como tu sonhavas, Joanna, não acordar dele nunca, nunca, a roçar no veludo das tuas pernas em serpente, a beber o purificado sangue dos Incas, a comer a laranja fogosa e ardente
- como sumo de veia densa –
, imagino-me, com a raiva da angústia atrasada, a arrombar-te as pálpebras dos olhos para um mundo novo.
Para um mundo novo amanhã. Novo como folha branca, Joanna, novo.

jtf

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