19.8.06

XVII

A noite era daquelas chatas, achatadas de acalmia, espalmadas, como ondinhas de lago em anel circulando em torno do centro, nenhuma luz em casa, apenas o nocturno rosnar dos móveis em gemidos de fantasma escondido, sete divisões e só tu em casa, cozinha, sala, quartos, casas de banho, congelavam num silêncio acre. Apenas tu, prolongada de lado na cama, a cara de lado, as pernas em tesoura entrelaçada no lençol branco, a janela meia aberta,
- para não sufocar o veneno do desprezo, ácido –
, o cortinado em fole bailando com a brisa, coreografia da noite, os teus braços em latitudes opostas, sul de enganos norte de equívocos, abrindo os cento e oitenta graus do sonho que talhavas, que arriscavas ainda forjar,
– Hoje não durmo em casa
, tinha-te dito à tarde ao telefone, quando ainda o sol nos falava ao ouvido, cada vez mais baixo, cada vez mais esparso, não te soube justificar bem, como sempre, afinal a imaginação não chega para muito já o sabes,
- Tenho que trabalhar até tarde, Joanna
, numa resposta irreal de novela barata, numa falsificação de actor de cinema sem filme, numa selvagem inépcia para o disfarce, num gato escondido com o rabo todo a ver-se, todo de fora. Agora, calendários depois, imagino-te nessa noite descolorida, cinzenta de vácuo, na brisa achatada da podridão, a casa ainda escura como sempre, o murmúrio da madeira a tinir como fantasma pendente, presente, e eu num quarto qualquer de hotel a injectar-te o veneno do desprezo no peito com a arma da carne, presente, eu a demolir as setenta divisões da casa que fizemos, presente, eu estendido de lado na cama, a outra a tomar banho, presente, o som da água a espirrar na banheira, presente, da água a correr-te pelas maças do rosto até à boca, salgada de nojo, presente, travo amargo do sal do engano presente, ainda pendente, ainda e sempre presente.
Só acordas quando a coreografia finda, o pano fecha, os braços recolhem,
- o sul e o norte juntam-se –
, de cento e oitenta até ao zero inicial, compasso de dança. Inicialmente não sabia o que fazia, a cabeça em cima dos ombros mandava pouco, jorrava inconsciência sobre a nuca aérea, intoxicado pela soberania das saias e do rímel, infectado pelo vírus vulcânico do corpo. Acordaste, recolheste as mãos, fechaste a tesoura dos membros nus, a água a correr cansada para o banho depois da noite sem mim, Abandonei-te, Joanna, eu sei, troquei ouro por lata, eu sei, desperdicei tudo por um rabo de saias à minha frente, eu sei, como que te vejo agora a entrar no banho e a sair dele, a tilintar do frio carrancudo de Dezembro na serra, a toalha da cor dos lençóis de linho, branco, circulando sobre ti fixa nela própria, a pele a pingar numa ausência opaca, o corpo a descobrir-se com os movimentos, branco, os seios e as costas, lembro aquelas noites com o casamento ainda fresco, duas toalhas brancas a envolver-nos o corpo presas nelas próprias, a minha na cintura, a tua no peito, sorrisos sãos, o banho depois da noite comigo, o calor do vapor a tapar todos os poros, os meus braços a puxarem-te pelas costas contra mim, as toalhas a caírem pela inércia do desejo fogoso da carne, as palmas das mãos a viajar pelas tuas costas molhadas, o vapor a entrar no quarto, os lençóis ainda brancos,
- agora ainda os mesmos –
, o rosnar pesado de animal de carne e osso como os outros bichos, pulmão ofegante como atleta de maratona, a janela meia aberta e o cortinado em dueto com o vento, as toalhas já no chão, brancas, pele sobre pele, força sobre força, fome e vontade de comer, visita guiada de mãos em monumento de pele ensopada, dez guias explicando cada poro, cada curva, cada som, o peito apressado pela fome, as tuas pernas a abrir como tesoura entrelaçada nas minhas sem que as controles, julgo ouvir o vento e a cortina a bailar sobre nós, num cúmplice movimento de ternura, ténue como o das aves, movimentos cadentes e rígidos dentro de tua interna carne húmida, uma vez, e outra, e outra, desvias a cara para o lado no teu melhor perfil, e outra vez, e outras, cheiro a tua respiração e a paz bate à nossa porta, a meta da maratona à vista, a fome a fechar-se, Acabou, a cortina e o vento admiram-nos com o olhar do ardor cumprido, Acabou, Joanna.
Num quarto qualquer de hotel, com a água a diluir-se pelo ralo, não dormi em casa porque tive a mesma fome, a mesma força a escorrer-me sobre a nuca frívola, a mesma pele ensopada, o mesmo ardor comprido cumprido. E em nossa casa nenhuma chama, só tu, só o murmuro taciturno dos móveis em gemidos de fantasma presente, só a tesoura das tuas pernas a cortar-me às tiras, pendente, sete divisões e só tu em casa, que congelaram no silêncio depois de toda a luz, depois de toda a luz, de toda a luz morrer. Ainda e sempre a morrer.

jtf

1 Comments:

Blogger Isa Mestre said...

Sem palavras, mais uma vez. Surpreeendes-me em cada texto...e quando eu penso que já deste tudo, afinal é mentira. Há sempre mais e mais. Obrigada por teres sempre mais e mais para alimentar a minha fome. Mais um texto fantástico, esgota-se a minha capacidade de classificar-te.É verdade, as palavras às vezes não chegam. Lembras-te? Nas entrelinhas, aquilo que ficou por dizer, talvez o mais importante.
Pois eu só tenho a dizer que nunca páres, que nunca permitas que esse teu comboio de talento, de alegria das palavras, de luz, de cor, de ânimo e ao mesmo tempo de uma certa loucura (que afinal todos temos) encontre o seu destino. Nunca deixes que esse comboio fique pela paragem mais próxima. Vai, vai até ao limite, continua a escrever e a encantar.

Um beijo

Isa Mestre

7:49 AM  

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