12.8.06

XVI

A janela mostra-me os carros como formigas de cova em cova. De minuto em minuto. Param, arrancam, param outra vez. Minuto sobre minuto, num baloiço amorfo de vitórias antes das derrotas que serão triunfos também. Voltarão a arrancar, por certo. Assim eternamente. Em repetições ao ritmo de pendentes solavancos dos passos dos chispes no chão. Não sei bem quantos carros vejo agora pela janela, uns cinco, junto ao semáforo da cabeceira da minha casa, talvez uns cinquenta. Sei lá. Nos moles segundos em que escrevi estas sete frases pararam e arrancaram e pararam uns vinte, Para quê?, andará todo este mundo de caras e de volantes a parar e a arrancar para chegar a ser feliz?
Numa agitação de sumo concentrado,
- Agite bem antes de abrir
, jorram os rótulos estatelados na testa das pessoas de rua, como recomendação das fábricas da carne e da ossada. Ou será que correm para ir sendo feliz? Não sei, volto a não saber. A parar e a arrancar para voltar, tempo pisado, a parar num semáforo verde-claro de fortuna que em luzes sibilantes gritará,
- Felicidade! Chegou.
Não sei se gosto da felicidade. Não sei se me apetece parar e arrancar como os carros da rua. Acho que vou sendo feliz, apenas. Vou sendo,
- num contínuo fosco de passados e de futuros de que só sentimos as sombras cinza. –
Para se no caso de perguntarem,
- E tu? És feliz?
, acho que respondo que sim sem saber muito bem o que significa sê-lo, engasgar-me-ei com o tropeçar das palavras na língua e na saliva, rasteirado pela vida maculada de rotina amorfa e ferrugenta e trôpega de constância. Acho que devo ser feliz, mas não sei. Agora não o sinto, a luz áurea do sol envergonha-se comigo,
- nesta mesa de café branca de plástico árido e estéril –
, os sorrisos escondem-se quando os procuro, as palmeiras vão-me ofuscando as réstias de festa que hospedei em tempos. Em tempos. Houve tempos em que guardei no bolso as festas de outras vidas. Em tempos.
Mas acho que devo ser feliz, afinal não me irrito com respirar, nem com comer. Não me canso de olhar para ti, Joanna, quando me pedes que o faça. E até gosto de dormir. Mas o Tempo afinal vai passando. Vamos ficando a gostar menos de dormir,
- cabeceamos, dormitamos apenas –
, vamos suportando pior o frio dos invernos mais sisudos, aqueles que não sorriem,
- mantinhas sobre as pernas mesmo no verão, o Tempo afinal passa e as artroses batem de vez à nossa porta com o nó do dedo médio na madeira, que timbre –
, o respirar é amargurado de cada vez mais difícil, o apetite é sofrido de cada vez mais diminuto. O Tempo vai passando,
- o tempo pisado –
, agora até vamos menos vezes ao teatro e ao cinema. Estarei enganado ou adormeces no cinema,
- afinal também gostas de dormir , que eu sei –
, gravitas numa nuvem enquanto a legenda, na barriga do grande ecrã, te desperta sussurrando,
- Acorda para a vida, Mary
, mesmo não sendo uma mary, finalmente também acordaste chicoteando o bicho teimoso da latência, sonolenta, os olhos a colar a meio nos pêlos convexos, as mãos suadas da viscosidade que só o sono nos dá, as pernas na posição dos latentes em exercício de sustento, sonolenta. Também tu só acordaste quando o verde do semáforo te deixou que acordasses, quando te murmurou alto,
- Chegou
, julgo que também não saberás responder a,
- E tu? És feliz?
, tropeçarás num sim sem saber o que traduz, a saliva e a língua atrapalhar-te-ão a sinceridade do impulso, cairás na rasteira que a bolorenta inércia dos nossos dias te alongará no chão. E esperarás, com as pernas na igual posição dos latentes, com as mesmas palmas pegajosas do suor do sono,
- também os olhos colados nos pêlos paralelos –
, que um semáforo te grite ao ouvido como anúncio de lotaria,
- Felicidade! Chegou.
Que diabo, afinal até suporto respirar, até gosto de comer, até desejo olhar para ti, Joanna, mesmo quando nem me pedes que o faça.
Eu até gosto de dormir.
Nos melhores dias até fico a pensar que já
- Cheguei.

jtf

1 Comments:

Blogger Isa Mestre said...

Como é bom ler-te...Trazes a leveza das palavras que não precisam ser pesadas para dizerem muito...leves, leves, leves. E é quando consigo voar sobre as suas asas que acredito naquilo que descreves, é nesse momento que também eu tenho vontade de gritar ao mundo: Cheguei. Mas será que cheguei? Será que chegamos?
Haverá esse semáforo verde nessa avenida das nossas vidas. Será? Tu sabes e eu sei.
Obrigada por nos levares por novos mundos sem sair deste mesmo lugar.

Um beijo

Isa Mestre

1:30 PM  

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