14.4.07

XXV

Lá fora um sol bege e laranja cobre-me as visões com a força do clarão, e por entre os buchos do jardim do vizinho uma espécie de brisa acanhada espalha as folhas secas do último Outono, em cima, junto das macieiras, já cravejadas de flor, há ninhos em forma de ovos redondos, como que dizendo que os dias de sol estão chegando, Não sei se na minha idade poderia saber o que esperar se o sonho se fechasse, se fechasse sobre mim com uma força parece-me que negra,
- sim, uma força negra -
, não sei, por vezes não sei se o mundo deixa de acreditar no próprio mundo e desinteressa-se de mim, não sei, desinteressa-se e ignora que respiro e que me alimento dele, do sorriso dele, do cada vez mais raro sorriso dele, não sei, mas por vezes acho que me desinteressei do mundo sem que pense muito nisso, E para quê pensar muito nisso?, para nada diriam os sérios, para nada Jesus, se já nada me interessa, se já nem o som do charuto que me viu crescer ouço agora, por entre constipações e varicelas e dores-de-dentes a meio das noites negras, invernosas, eu com pouco mais de três anos de mundo, as noites em que o próprio mundo rosnava escondido, rosnava, rosnava com uma força negra parece-me que negra, sim uma força negra, a minha mãe para o meu pai em pedidos bêbados de sono,
- O miúdo está a chorar, vai lá, António
, e o meu pai em movimentos todos eles bêbados de sono também, a dobrar as pernas com a delicadeza dos ourives, repreendendo o chocalho do lençol na noite negra, encaixando os pés nos chinelos como se fazia com os legos, primeiro um depois outro, caminhou até mim, afeiçoou-me o lençol num chocalho demorado, passou quatro dos dedos da mão na minha testa, não sei se na minha idade poderia saber o que esperar se o sonho se fechasse mas saberia que os quatro dedos do meu pai estariam lá, estariam lá, lá. Não sei se algum dia saberei que força negra é essa, que força me impede de saber por que não me deixo amar, Por que não me deixo amar, Joanna?, que força me impede de clarear a cabeça e compreender o porquê, o porquê, o porquê,
- Filho, filho, o teu pai, o teu pai morreu
, mas porquê morrer, porquê, sem que o imaginasse antes, caminhava respirava comia, vivia a vida dos normais num mundo de normais, e sem que imaginasse a morte a fermentar dentro, dentro, dentro dos pulmões e das veias, lá dentro, escondida numa cova qualquer que vai cavando baixinho, aos sussurros, encoberta como os jogos de escondidas das crianças, aposto que muitas mais mortes fermentam dentro de vidas outras, aposto, sem que notem, o colesterol nos níveis, sem dores-de-dentes, nem celulites ou pedras nos rins, mas aposto que o bicho fermenta, fermenta, saberia o meu pai que,
- O miúdo está a chorar, vai lá, António
, mas o miúdo chorava porque talvez já aí soubesse ou sentisse que o bicho vai engordando dentro das vidas, dentro das vidas, das vidas normais no mundo dos normais, que sem nos darmos conta há bichos destes espalhados por aí, pelos passeios e pelo alcatrão das estradas, pelas mãos e pelas veias, bichos que nos comem a carne e sem que o entendamos fazem crescer uma força negra parece-me que negra, sim uma força negra, negra como cobras sem que as controlemos, sem que as sintamos, serpenteando nas frinchas das portas como na casa da avó de Chaves, ondulando ondulando, continuo sem saber se na minha idade saberia o que esperar quando o sonho se fechasse, sei apenas que quatro dedos da mão do meu pai estarão lá, estarão lá, para que ao menos o bicho saiba que o meu pai está sempre comigo, sempre, sempre, sempre. Sem o meu pai cá o som da casa parece-me agora outro, parece-me mais baixo e mais triste, julgo que a casa sente falta dele também, o ar é outro, um ar caduco, acho que deviam enterrar as pessoas junto com tudo o que era delas, os objectos, os cheiros, os sorrisos e os olhares, as roupas e as palavras, sim enterra-las todas na cova delas, junto com elas, que importa morrer se continuamos a ter cheiros de charuto a precipitar-nos as lágrimas à mínima lembrança, de que vale, se temos livros e vozes prontinhas a apanhar as pálpebras a jeito e alagá-las de chuva, de uma chuva tão grossa que mal as vistas se abrem, de que vale?,
- De que vale morreres se dentro de mim nunca morreste?
, as árvores do jardim em frente à janela da cozinha concordam comigo, também elas sabem que não morreste, junto com elas um sol agora mais laranja que beije cobre-me as vistas que mal se abrem, por entre os buchos do jardim a brisa parou e engoliu todas as folhas secas do Outono, junto das macieiras, agora já com flor, continuam os ninhos de andorinhas em forma de ovo como que dizendo,
- Também nós sabemos que não morreste,
, enquanto continuo a sentir o som do teu charuto conversando comigo e a cor de um sonho negro se deita lentamente sobre meus olhos. Sobre meus olhos.

jtf

1 Comments:

Blogger Isa Mestre said...

Fantástico! O melhor texto é aquele que transporta para dentro de nós o enorme vazio de uma ausência sentida. Fã número um. Para sempre. Amei.

Isa M.

3:13 PM  

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