29.11.06

XXII

Quando a minha mãe ligou lá para casa as únicas coisas que se viam eram os números aos pauzinhos encarnados, zero cinco, dois pontos verticais encavalitados, três dois, nem o respirar se ouvia, nem a casa se ouvia, a brisa dançando as árvores escondida em mudez, magríssima que nem se sentia, os quartos dormiam na melancolia das segundas-feiras de Outono, num soprar a preto e branco, suspenso apenas pelos pauzinhos encarnados e os pontos a meio, quando a minha mãe ligou lá para casa não me lembro de ter pensado, não me lembro de ter respirado, não me lembro sequer de me ter lembrado de nada, não lembro, não me recordo de ter visto o escuro do quarto a entrar-me pelos olhos a dentro, como tigres que mordem, do polvo do medo a tremer-me os ossos uns contra os outros, a tilintar num chocalho quebradiço de criança, a afocinhar as cores do verão na lama dos cães da rua, os vadios, os que não sabem onde dormir, os vadios, os que não sabem responder de tronco direito, nariz aprumado,
- E tu? Quem és? De onde vens?
, não sabem responder porque são vadios, não se lembram,
- E tu? Quem és? De onde vens?
, a tilintar num vendaval de mágoa, gordíssimo que se sentia nas mãos, a esbarrar nas rochas curvando o tronco desalinhando o nariz, amarrotado à força do vento, quando a seguir com um disparo de lóbulos dizem,
- E para onde vais?
, não me lembro de ter pensado, quando o telefone latiu estiquei o braço, desastrado e dissolvido desdobrando-se no cotovelo, sem rumo nem mapa, cego e mudo, o telefone latiu por entre o escuro das segundas-feiras de Outubro, o galope do latido a avermelhar-me o ouvido, o quarto e os números a avermelhar também, não sei agora quantas vezes tocou, julgo poucas, o acordar sobressaltado dos praças em camaratas de trinta, os olhos abriram mas não muito, débeis, infiéis a certificar o quarto, a janela, o céu escuro de um Outono ainda a meio, as calças de ganga no chão, o casaco castanho suspenso, suspenso no canto das costas da cadeira, quase sucumbindo, quase dizendo,
- Mais um toque do telefone e caio ao chão
, e os olhos a abrir com o vagar dos recém-nascidos, confirmando o quarto, confirmando as calças, o casaco, a Joanna respirando ali ao lado, respirando a preto e branco, cheirando a melancolia das segundas-feiras de Outono aos chupões, contudo não me lembro de ter pensado na vida para trás, não me lembro de ter respirado este quarto triste, não me lembro sequer de me ter lembrado, não me lembro, nem mesmo de ter sentido o escuro a entrar por mim a dentro, o polvo do medo a vibrar dentro da alma, gritando de alerta, zumbindo como beatas de capela,
- Não se sabe o dia de amanhã
, o polvo a entranhar-se nos ossos, num chocalhar a chumbo de caça, com os cães de rua a cheirar-me as feridas, os vadios, os que não sabem onde dormir, de nariz deprimido, o tronco submisso, e o chumbo a ecoar muitas vezes,
- E para onde vais?
, quando a minha mãe ligou lá para casa não me lembro de ter pensado que o mundo desabaria daí a pouco, não me lembro de ter pensado nos gelados da Caparica aquecidos pelo sol do Verão, amarrado por uma mão ao meu pai e na outra o gelado derretendo, de ter pensado no cheiro a charuto infiltrado nas narinas como fantasma, na tosse que o fantasma soletrava dentro dele, no jornal na cadeira da sala, no cheiro a água de colónia que para mim era o cheiro a pai, não me lembro de ter pensado nesse cheiro, de ter pensado que nunca mais me lembraria desse perfume a irrigar-me os olhos, a enrijar-me os braços, a fazer-me endireitar o tronco e aprumar o nariz, não me lembro, porque quando a minha mãe falou do outro lado, soluçando as sílabas, arfando sons empapados em lágrimas encarnadas, como pauzinhos de relógio, as palavras a custo, o som do choro em fundo, ressoando, ressoando, crescendo tanto que mais parecia tigres que mordem, um som a preto e branco, um som de Outono, chuvoso como Novembro, aí o mundo todo me pareceu pequeno, e negro, aí o Outono nunca mais daria lugar à Primavera, aí o escuro nunca mais daria lugar à luz, a noite lugar ao dia,
- o soluço da voz molhada a avermelhar-me o ouvido, crescente, crescendo –
, porque o dia nunca mais nascerá quando,
- Filho, filho, o teu pai, o teu pai morreu.

jtf

1 Comments:

Blogger Isa Mestre said...

João Teago, mais uma vez tenho de te dar os meus parabéns. O assunto volta a ser diferente, voltas a pintar quadros de todas as cores, e voltas a surpreender, a tingir de talento (sempre) essa tua tela tão linda. E quando os sentimentos são a tinta que te jorra do pincel, então as palavras que só por si já são belas, ganham magia, ganham asas quando nos esquecemos como voar. Obrigada pelas tuas palavras que nso entram no coração e se semeiam no mundo se sonho. Do outro lado do mundo...eu, que te sinto e te ouço.

Isa Mestre

4:08 PM  

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