16.6.07

XXVI

Para a Joana

Quando penso no comprimento dos dias sinto os ponteiros do relógio parar, esconsos, entorpecidos por uma pasta viscosa que não deixa mexer os pés, como que amarrados pela espessura do tempo, os dias passam é verdade, mas ainda ontem foi verão e é já verão outra vez, ainda há pouco acordei e já me deito outra vez, quando tinha cinco anos o tempo cheirava a outro, cheirava a gomas e chocolates a engordurar os limites dos beiços, julgo que nessa altura não sentia os ponteiros suspender a cada instante, nem o diâmetro do tempo me impedia o caminho, quando penso no tempo amarro os dias uns aos outros e amarroto-os como se faz com o papel que já não se usa, e deito-os fora, depois reciclo-os, volto a usa-los, as terças-feiras, as quintas todas direitinhas em papel reciclado mais amarelado do que o outro, parece que mais rugoso que o outro, com linhas horizontais azuis clarinhas e duas verticais num rosa de pastilha-elástica de morango, continuo a escrever nele até amarrar as terças e as quintas todas no mesmo caixote do lixo direitinho à reciclagem do tempo,
- Môr, chega aqui um instantinho
, e o tempo reciclado a rolar pela descida da vida, a rolar,
- Môr, chega aqui um bocadinho, não ouves?
, ouço uma mulher que vim a saber mais tarde ser Dona Fernanda direitinha para o marido afundado n’ A Bola do dia anterior, tão afundado que até se distinguiam bolhinhas-de-ar à superfície da água como fazia em miúdo no tanque da avó de Chaves, ambos de fato-de-treino e sapatilha branca, na frente da Fernanda um carrinho da Chico num cor-de-rosa quase insultuoso, como que o representante mais possante do tunning para bebés, dentro do carrinho ressonava a todo o vapor a Cátia Cristiana empurrada a puxões de voz, passeiam ao acaso pelo Colombo, acompanho com o olhar o ritmo dos esticões e reparo nas centenas de fatos-de-treino brancos que vagueiam em redor, carrinhos de bebés rosas e cor-de-laranjas florescentes em gincana entre a multidão da sapatilha branca,
- Môr, este frigorífico parece tão jeitoso
, e o marido mais concentrado no Bruno Meireles que vai jogar para a Arábia e ganhar uns milhões do que na carne que pode congelar com um Ariston de dois pisos, a Cátia Cristiana a desatar a chorar à força de decibéis que afligiam quem passava, as montras coloridas como papagaios em jardins zoológicos do tempo, numa alegria de pardais a esvoaçarem à luz do primeiro sol de Fevereiro, como que centenas de pássaros poisando sobre as montras seduzindo frigoríficos numa volúpia de famintos, depois regressam aos Ópeis e aos Fiates no piso menos dois satisfeitos, de barriga cheia, com A Bola dobrada em quatro a fazer de leque num pescoço onde reina uma medalhinha de ouro pequena, retornam às marquises de Almada ou da Amadora a lamber os gelados do último calor, um cone três bolas,
- Môr, esta vida parece-me tão feliz
, e eu assistindo ao festival sorrindo, sorrindo longamente, vendo a Fernanda esticar os ângulos da boca sem custo, e eu com toneladas nas bochechas que para erguer os cantos da boca vejo-me negro, pensando no comprimento dos dias, sem um cêdê baloiçante no retrovisor do meio de Ópeis ou de Fiates que me levem daqui para fora, para um qualquer piso menos dois onde sorriria sem custo, pensando que ainda ontem foi verão e é já verão outra vez, ainda há pouco acordei e já me deito de novo, quando penso no tempo amarro os dias uns aos outros e amarroto-os para me esquecer deles, para me esquecer deles e fazer como a Fernanda, empurrando os dias à força de puxões de voz, Um dia, Joanna, hei-de ter umas sapatilhas brancas como as dela.

jtf

0 Comments:

Post a Comment

<< Home