11.3.08

XXXII

Segurar uma pessoa pelos ombros requer uma sensibilidade rigorosa, mãos moles e ao mesmo tempo firmes por forma a não tombar, esmigalhar-se e depois apenas pozinhos esvoaçantes, e punhos moles também para não ferir, não sangrar, Por vezes julgo as minhas costas comprimidas por pesos e pesos sem fim, pessoas móveis automóveis moínhos-de-vento montanhas infantis estantes com livros e papéis variados e coloridos até,
- Passados, é o que é
, segurar pessoas pelas costas e ao mesmo tempo caminhar e respirar como se nada fosse, A minha prima costumava dizer que a vida continua mesmo que não queiramos continuar a respirar, Na altura pareceu-me que não era bem assim, porque se fizesse muita força e não respirasse aí por uma meia-hora,
- Meia-hora ou três quartos-de-hora
, se não respirasse aí durante uma meia-hora talvez a vida parasse e não voltasse a arrancar nunca mais, qualquer coisa assemelhada a quando carros não querem pegar e mesmo que se empurre ou se desampare por decidas abaixo não arrancam, e parece que mortiços e sem vida alguma que reste neles,
- Mortos, é o que é
, de maneira que não acreditei na minha prima Célia, ainda para mais na altura para mim afigurava-se-me difícil acreditar na Célia uma vez que mais de cem quilos de pessoa, obesa e de carnes moles, afogava colheres de compota pela goela gigante abaixo, diria que mergulhava colheradas como se não houvesse amanhã, Hoje que já passaram uns anos comecei a acreditar nela, Hoje também eu queria que a vida não voltasse a arrancar nunca mais mas sinto não me ser possível congelá-la, Não sei bem o que fazer para acabar com ela, Durante as tardes mais chuvosas penso em empurrá-la por decidas abaixo esperançado que se desconjunte em fragmentos, pozinhos esvoaçantes,
- Mortos, é o que é
, e esquecer-me que existiram sequer, pozinhos esvoaçantes uns segundos e depois um silêncio profundo, tão profundo que juraria que nunca existiu sequer,
- Inventado, é o que é
, de maneira que gostaria da Célia à minha frente de novo, dizer-lhe como os dias se apequenam, como pesam todas as coisas que deixamos para trás por resolver, sorrisos a que não respondemos, olhares indefinidos, suspiros inseguros, umas criaturas assemelhadas a beijos, uniões de dedos pertencentes a pessoas distintas, uma mistura de odores de peles diversas, Dizer-lhe até que houve um dia que me sentei no primeiro degrau das escadas cá de casa, coloquei as pernas juntas e a cabeça encravada por entre os meus joelhos brancos, fiz muita força e parei de respirar aí por uma meia-hora, Célia
- não sei se me consegues ouvir –
Célia,
- ouves-me? –
, asseguro-te que senti o ar desunir-se todo que nem partículas, pozinhos esvoaçantes e o silêncio mais escuro do mundo, O silêncio mais escuro do mundo, tudo se desuniu e parece que por segundos acreditei descomprimir as costas e peso nenhum, Peso nenhum, Os dias agigantam-se e tudo quanto existia voltou a dissolver-se em pó, Em pó esvoaçante,
- Silêncio.

jtf

1 Comments:

Blogger fábio videira santos said...

Vim ler segunda vez. Experimentei colocar as pernas juntas e a cabeça encravada por entre os meus joelhos. Juro também que o ouvi, tão escuro, o silêncio mais escuro do mundo.

(Sem dúvida, O ensaio)

F.S.

4:18 PM  

Post a Comment

<< Home