15.8.08

XXXIV

Neste momento sento-me num banco de jardim verde, Podemos dizer que há uma brisa melódica, melancólica numa escuridão de linces, Continuar a caminhar é o que sinto que todos estes eus dentro da minha cabeça me pedem, Estes todos são muitos, são as idades todas que já tive e que ainda vou tendo, deslizam com velas e brisas escondidas, Todos me pedem sem que consiga dizer-lhes que se calem e me deixem desmaiar sossegado,
- Calem-se senhores
, há vozinhas azuis-lilás dizendo que tem que se continuar a caminhar, naquela voz já escondida sete palmos debaixo de tudo quanto ainda existe, tudo quanto ainda existe cá em cima, aquela voz de que só se ouvem restinhos, fiozinhos insignificantes e que aos poucos só guinchinos minúsculos, infantis, minúsculos como grãos de pólen, amarelos e ligeiramente invisíveis, ligeiramente gigantescos, Que insensibilidade essa coisa a que chamamos vida, uma coisa sim, O meu irmão João António nunca chegou a ver de que cor eram os dias, naquela altura qualquer tuberculose mais forte lhe calaria a luz, calou-o a meio de um dos primeiros Outonos, Vozinhas insignificantes, não sei bem se continuo a ouvir vozes como ouvia antigamente, No entanto continuo certo de que mesmo não as ouvindo sinto-as, tão claras que por vezes até me dá para parar de andar e sentar-me horas a fio descobrindo-lhes os inícios e os finais, inteirar-me delas e perceber por que razão vivem comigo estes anos todos, por que razão não me consigo desligar delas, cortar as pontas que ainda nos unem, que ainda me unem às idades que já tive, julgo que já me é impossível acordar sem elas, comer ser elas respirar sem elas sonhar sem elas até, contudo continuar a caminhar afigura-se-me ainda uma montanha inclinada, dizer bons-dias boas-noites, sorrir obrigatoriamente que nem crocodilo, pentear o cabelo sem saber a razão, e no entanto uma montanha tão aguda e eu tão incapaz de vencer que nos dias mais invernosos escondo-me, e ouço vozes tão nítidas que por vezes guinchinhos minúculos se transformam em gritos cheios e gordos, numa gordura que transborda, uma obesidade alargada à força de compota e compota e compota,
- gosto da palavra compota, as palavras foram feitas para se gostar delas -
, gritos intensos que por vezes um sobressalto e o coração a querer sair dos carris, e durante turbilhões e turbilhões ponho as mãos nos bolsos e olho o horizonte, penso,
- E se eu gostasse muito de morrer?
, parece mentira mas que verdade tão forte,
- E se eu gostasse mesmo muito de morrer?
, e fico nisto eternidades, eternidades variáveis é certo, sendo que a eternidade é uma linha de comprimento incerto, indefinido e preclitante como os movimentos das moscas, por vezes diríamos que a eternidade é tão longa que nem lhe adivinhamos o fim por força de comprida, outras tão curta que basta um segundo para nos tornarmos eternos como pedras, calhaus, Se bem que nesta altura julgo sentir fiozinhos insignificantes correr nos intervalos que separam as pestanas, e é nesse instante que me julgo eterno que quase consigo voar, No momento em que consigo alargar as respirações e esticar as palavras com uma força que julgava impossível contento-me comigo, e julgo-me eterno, mesmo que uma eternidade de segundos e não uma eternidade eterna, Contento-me e não é com o poder de ser eterno, Distendo a boca ao comprido e saboreio o som de vozes antigas e dispersas, imagino que um dia também a minha voz distenda lábios e espíritos, lábios e espíritos, lábios e espíritos, Lábios e espíritos.

jtf

1 Comments:

Blogger isabel mendes ferreira said...

"espírito". denso.

12:01 PM  

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