14.4.06

VII

Joanna, acorda-me. Aqui, neste canto do mundo, há apenas a ténue sombra da tua espádua robusta, rija como ossos sólidos de elefante, a ocultar-me o canto da tua cara nesse travesseiro acanhado. Esconde-me a maxila inferior e o beiço de cima. Não consegues acordar do sono para que te levei. Nem eu mesmo saberei tornar inteligível a razão por que te terei levado. Qual era a intenção? Não sei. Acho que nunca a soube. Nem mesmo a virei a saber. Apenas sei que as rugas que me pousam sobre as vistas depositam tranquilidade branca sobre os braços da consciência. Expiro com fluidez ordeira, espontaneamente, sem paragens forçadas pela lei do esticão, nem desadequadamente obrigatórias pelo dogma da rotina. Inspiro-te e insuflo todos os estilhaços do meu corpo que vais expirando. Expelindo, como máquina de selecção. Vivo com o ar que a tua gémea alma vai rejeitando. Saltamos, com as mãos arregaladas, de pedra em pedra no rio que nos divorcia. Mas, no fundo, nos funde. Vivo o logro de imaginar que essa auto-suficiência em dueto nos tornaria imorredouros. Fará com que viva com o ar que me dedicas, com o sonho em que me imaginas como realmente sou.
Por mais que tentes, que estiques, que escondas. Que te estiques e que te escondas. Por debaixo da cama, do tapete, da cómoda, como se faz quando não nos queremos livrar do lixo que foi aterrando nas coisas. Coisas sem pó é como monumentos sem história. Vejo o mento do teu rosto baixar e subir como desenhando os caracteres do simplório vocábulo «sim». Mesmo que te escondas no sótão, lá em cima, não consegues acordar de um sonho em que eu não tenha entrado. Não consegues. Não consegues. Não.
Lentamente, mais pausadamente do que o meu pestanejar inerte te fixa, rodas o ombro rumo ao meu pulso. Extremidade de chegada, repousada ao cabo do ângulo de cento e sessenta graus que o cotovelo me inscreve. Vou, paulatinamente, deduzindo-te a face e tudo isso se esbate como sombreado de carvão em folha branca.
Caminho. Não vou sendo mais que uma maqueta de sentimentos fundos e afectos manifestos. Vou sendo, ou tentando ser, ou imaginando tentar ser um convicto da solidão. Física e incorpórea. Exalto a determinação, o egoísmo nutritivo, a ambição medida, as guerras cegas de vistas destapadas. Corro sempre sem meta à vista, sem fixação nem condição de felicidade. Tudo me é importante. Se eu próprio me fosse suficiente, Joanna, não precisaria do teu ar. Braços quentes. Olhos fogosos. Lábios cálidos. Palavras mudas.
Abro-me. Olho-te com o desejo regado dos olhos, de quem precisa de encontrar a vida que perdeu, sem saber muito bem como perdeu ou sequer por que razão a teve. Todos conseguimos viver sem aquilo que nunca tivemos. Mas nunca conseguiremos respirar se tentarmos viver sem aquilo que já tivemos. Só te perco porque um dia te tive, Joanna. Só me falta aquilo que vou perdendo, partindo, escondendo. Nunca ter é como nunca conhecer, é como nunca tocar, é como nunca sentir. Só se sente aquilo que sem tem, ou teve. Precisamos de ar para alimentar os pulmões, de água para humidificar o corpo, de carne para sustentar a armação. Mas igualmente de desejos para irrigar o peito, de sentimentos sentidos, vividos para vitalizar a mente. De ti para me sustentar o corpo, Joanna. Levanta-me os braços.
Sangras-me por dentro, só tu lhe conheces o sabor. Agora já não me devolves o ar, a água, a carne. Derramas-me os desejos em gotas de desprezo, esmagas-me os sentimentos em grãos de amargura. Retiras-te da minha frente para que nunca mais te possa atentar. Não te possa sentir. Não te possa receber na palma da mão sobre o lençol da cama. Não te consiga destapar a face. Nem a alma.
Joanna, acorda.

jtf