21.9.07

XXVIII

(texto seleccionado para a Colectânea de autores de Língua Portuguesa "Outras Águas" - São Paulo, Brasil)

Nasci, cresci um pouco, nem dei conta do mundo mudar nesse instante, para bem da verdade ainda nem abria os olhos por inteiro, Era pequeno, Para estranheza dos bichos a quem chamavam adultos comecei a falar tarde, Desde muito pequeno que falo pouco, contraio-me, esgueiro a cabeça e primo o lábio de cima contra o de baixo, ligeiramente o de baixo sobrepõe o de cima por milímetros, Chamam-lhe beicinho mas eu gosto, Desde pequeno que falo pouco, olho os outros falar, ouço os outros falar, cheiro os outros falar, fixo-lhes os beiços subindo descendo alargando estreitando, curvando e formando ovais sonoras, óóóóó, mudando de posição a tentar formar um rectângulo musical, ááááá, beijando, sussurrando,
- Cheiras-me a mar
, o lóbulo de cima e o de baixo pressionam-se contra a língua ligeiramente de fora, Normalmente prefiro ver os outros falar, acontece-me desde pequeno, prefiro esticar as esquinas dos ouvidos e apreciar as sinfonias das vozes, os cheiros das palavras terminadas em ãos, os plurais a saltitar como caniches defecando em passeios,
- Prontos
, de vez em quando lá aparece um,
- Portantos
, para animar o cinzentão, Os adultos da altura agora velhos achavam isso estranho, mais estranho por não ser mudo, incitavam o motor dizendo,
- Fala filho fala
, mas qual motor qual quê?, não me apetecia, julgo que nem hoje me apetece, Puxavam por mim com os braços de quem puxa carroças, acendendo uma lareira de palavras esperançados que pegasse, que pegasse de estaca como o castanheiro que há décadas não se mexe do quintal da avó Mariana, Por vezes acredito que o castanheiro também não fala porque prefere ouvir os outros falar, prefere admirar-lhes as sonatas, os odores das expressões acabadas em ão,
- Profissão castelão pão canção razão parvalhão
, e derreter-se no açúcar dos plurais e das consoantes curvadas, angulosas de declamar, de pronunciar, Na normalidade dos dias comuns costumo resolver o assunto à base de,
- Sim sim
, por vezes alternado por,
- Pois claro claro
, ganhando tempo até à próxima golada, até à próxima paragem, até ao próximo monólogo cinzento muitas vezes em tardes cinzentas de cinzenta apatia, Levo sempre comigo o saco cheio dos advérbios de modo,
- Exactamente obviamente precisamente
, repetindo à força de martelos, repetindo mente mente mudando apenas o prefixo,
- Basicamente minto
, e com os dentes todos, Escondo o que penso, guardo para mim o que acho do tempo, do plantel do vilanovense, do último filme do Woody Allen e do romance do Umberto Eco, do casamento do filho da Dona Lurdes e do Senhor Aurélio com a rapariga do talho a quem a vila toda chama puta só porque saía com rapazes diferentes todas as sextas, Até conservo para mim o que acho das cores do arco-íris, da beleza triunfal de um semáforo, da delicadeza angélica de um arbusto, ou mesmo do sopro poético de simplesmente ouvir chover, Desde muito pequeno que ouço muito, muito, ouço os outros olhar, ouço os outros falar, ouço os outros cheirar, fixo-lhes os beiços descendo subindo alargando e estreitando, gritando,
- Óóóóó
, mudando as posições consoante a matéria, conforme o assunto, o tema, a variante. Poucas vezes abro a boca a não ser quando estamos deitados, apenas um lençol curto, carinhoso, respirando o ar que ainda circula no quarto a esta hora da noite, e abro a boca, encosto-a à concha da teu ouvido e digo suspirando,
- Joanna, cheiras-me a mar
, E eu gosto.

jtf