25.8.06

XVIII

Não há nada que me faça mexer daqui, o sol está parado, amarelado por indisposição interior, Agosto, tenho o corpo alongado na horizontal numa infértil cadeira de praia, peito para cima, a cabeça ligeiramente oblíqua de maneira que consiga ver os dedos dos pés, paralelos, os grandes e os pequenos, as minhas tiras de fixação ao mundo, que permitem que me mova e que mova o mundo sobre mim, o sol bate na testa, forte como granito indigo, bronzeia-me o corpo de marasmo pardo, Só peço que me deixem assim ficar, parado, calado, sem acção sequer para mover os dedos dos pés, para sacudir as moscas que de quando em quando pousam no dedo grande, no peito do pé, ou no início da perna, para sequer ter vontade de me mexer para o lado, para nem mesmo suster o sol a alcatifar-me a cara,
- ofendendo o creme protector. –
Ao longe o fio de cordel que separa o mar e o céu, o reflexo do sol na água, crianças dentro dela, os pais vigiando com a atenção intermitente que os pais têm, e eu deitado, os borrões das algas pretos no areal, as revistas cor-de-rosa salpicadas de areia em enxovalho merecido, os lerdos romances-de-verão ao género telenovela em papel calhamaço, e o som do mar a bater na costa, nas costas, gemidos de desprezo seco ocupando o ouvido, sussurro de fundo, como os berros das crianças dos outros,
- Quero um gelado, pai
, e o pai distraído com as curvas da gaja do lado, a mãe fundeada num desses calhamaços de verão, com o cotovelo a trilhar a revista cor-de-rosa agregada com a areia molhada, julgo que nem ouviu o grito da criança, julgo só ter ouvido eu, que nem sou pai, Joanna, nem vou ser, mesmo que quisesse não o poderia, mesmo que quisesse dar todos os gelados do mundo não tinha mãos de criança a recebe-los, a inundar-me os ouvidos de preces por eles, os bracinhos no ar exigindo,
- Quero um gelado, pai
, se os tivesse largava todos os calhamaços de verão, esqueceria todas as curvas da gaja da toalha ao lado, com o cotovelo a doer no osso por não poder satisfazer aqueles bracinhos paralelos no ar. Nesse ápice lembrei-me do meu pai, da nuvem de fumo do charuto que era quase como o sexto dedo dele, dos gelados que comemos na Caparica quando nem sabia o que queria dizer a palavra gelado, quando nem sabia como seria escuro não ter crianças a pedir gelados ao ouvido, quando nem sabia que viria a sentir falta de choro durante a noite, falta do cheiro a merda e pó-de-talco quando se muda fraldas, nem sabia que os gelados eram importantes, Joanna, imagino que me pedisse gelados de baunilha com chocolate,
- os que eu mais gostava -
, junto com o cheiro a mar, o cheiro a limos, imagino, a areia molhada esborratada de algas pretas, imagino, o som do mar a bater na costa, nas costas, imagino, o nome que lhe daria, pelo qual o chamaria, imaginando,
- Francisco, quieto
, ou se fosse menina,
- Isabel, anda cá
, só faltavam corpo e gritos e choros para vestir os nomes, faltavam olhinhos boquinha mãozinhas bracinhos para me pedirem gelados como as crianças dos outros, a minha mãe submersa em terços e fedor a sacristia costumava dizer,
- É o destino, não se pode contrariar a natureza
, mas a natureza também faz furacões, monções, sismos, romances-de-verão, que diabo,
- Quero um gelado, pai
, adormeci com esta frase embrenhada na almofada, gelava na testa, quando acordei, Joanna, sentaste-te ao meu lado na cama, a mesinha de cabeceira com o copo de água do lado direito ao meu corpo, e lambuzaste-me conforto com a voz,
- Um dia vamos ser pais, vais ver
, mas eu não consigo acreditar, não percebo nada das naturezas nem dos destinos, não há nada que me faça acreditar, o sol está parado, amarelo por mal-estar interior, Agosto, o corpo estendido numa inerte cadeira de praia, a cabeça ligeiramente inclinada para conseguir ver os dedos dos pés, nada me faz levantar, nada me move e nada faz mover o mundo sobre mim, Só peço que me deixem assim ficar, parado, calado, a ouvir os gritos das crianças dos outros e o som do mar a bater na costa.

jtf

19.8.06

XVII

A noite era daquelas chatas, achatadas de acalmia, espalmadas, como ondinhas de lago em anel circulando em torno do centro, nenhuma luz em casa, apenas o nocturno rosnar dos móveis em gemidos de fantasma escondido, sete divisões e só tu em casa, cozinha, sala, quartos, casas de banho, congelavam num silêncio acre. Apenas tu, prolongada de lado na cama, a cara de lado, as pernas em tesoura entrelaçada no lençol branco, a janela meia aberta,
- para não sufocar o veneno do desprezo, ácido –
, o cortinado em fole bailando com a brisa, coreografia da noite, os teus braços em latitudes opostas, sul de enganos norte de equívocos, abrindo os cento e oitenta graus do sonho que talhavas, que arriscavas ainda forjar,
– Hoje não durmo em casa
, tinha-te dito à tarde ao telefone, quando ainda o sol nos falava ao ouvido, cada vez mais baixo, cada vez mais esparso, não te soube justificar bem, como sempre, afinal a imaginação não chega para muito já o sabes,
- Tenho que trabalhar até tarde, Joanna
, numa resposta irreal de novela barata, numa falsificação de actor de cinema sem filme, numa selvagem inépcia para o disfarce, num gato escondido com o rabo todo a ver-se, todo de fora. Agora, calendários depois, imagino-te nessa noite descolorida, cinzenta de vácuo, na brisa achatada da podridão, a casa ainda escura como sempre, o murmúrio da madeira a tinir como fantasma pendente, presente, e eu num quarto qualquer de hotel a injectar-te o veneno do desprezo no peito com a arma da carne, presente, eu a demolir as setenta divisões da casa que fizemos, presente, eu estendido de lado na cama, a outra a tomar banho, presente, o som da água a espirrar na banheira, presente, da água a correr-te pelas maças do rosto até à boca, salgada de nojo, presente, travo amargo do sal do engano presente, ainda pendente, ainda e sempre presente.
Só acordas quando a coreografia finda, o pano fecha, os braços recolhem,
- o sul e o norte juntam-se –
, de cento e oitenta até ao zero inicial, compasso de dança. Inicialmente não sabia o que fazia, a cabeça em cima dos ombros mandava pouco, jorrava inconsciência sobre a nuca aérea, intoxicado pela soberania das saias e do rímel, infectado pelo vírus vulcânico do corpo. Acordaste, recolheste as mãos, fechaste a tesoura dos membros nus, a água a correr cansada para o banho depois da noite sem mim, Abandonei-te, Joanna, eu sei, troquei ouro por lata, eu sei, desperdicei tudo por um rabo de saias à minha frente, eu sei, como que te vejo agora a entrar no banho e a sair dele, a tilintar do frio carrancudo de Dezembro na serra, a toalha da cor dos lençóis de linho, branco, circulando sobre ti fixa nela própria, a pele a pingar numa ausência opaca, o corpo a descobrir-se com os movimentos, branco, os seios e as costas, lembro aquelas noites com o casamento ainda fresco, duas toalhas brancas a envolver-nos o corpo presas nelas próprias, a minha na cintura, a tua no peito, sorrisos sãos, o banho depois da noite comigo, o calor do vapor a tapar todos os poros, os meus braços a puxarem-te pelas costas contra mim, as toalhas a caírem pela inércia do desejo fogoso da carne, as palmas das mãos a viajar pelas tuas costas molhadas, o vapor a entrar no quarto, os lençóis ainda brancos,
- agora ainda os mesmos –
, o rosnar pesado de animal de carne e osso como os outros bichos, pulmão ofegante como atleta de maratona, a janela meia aberta e o cortinado em dueto com o vento, as toalhas já no chão, brancas, pele sobre pele, força sobre força, fome e vontade de comer, visita guiada de mãos em monumento de pele ensopada, dez guias explicando cada poro, cada curva, cada som, o peito apressado pela fome, as tuas pernas a abrir como tesoura entrelaçada nas minhas sem que as controles, julgo ouvir o vento e a cortina a bailar sobre nós, num cúmplice movimento de ternura, ténue como o das aves, movimentos cadentes e rígidos dentro de tua interna carne húmida, uma vez, e outra, e outra, desvias a cara para o lado no teu melhor perfil, e outra vez, e outras, cheiro a tua respiração e a paz bate à nossa porta, a meta da maratona à vista, a fome a fechar-se, Acabou, a cortina e o vento admiram-nos com o olhar do ardor cumprido, Acabou, Joanna.
Num quarto qualquer de hotel, com a água a diluir-se pelo ralo, não dormi em casa porque tive a mesma fome, a mesma força a escorrer-me sobre a nuca frívola, a mesma pele ensopada, o mesmo ardor comprido cumprido. E em nossa casa nenhuma chama, só tu, só o murmuro taciturno dos móveis em gemidos de fantasma presente, só a tesoura das tuas pernas a cortar-me às tiras, pendente, sete divisões e só tu em casa, que congelaram no silêncio depois de toda a luz, depois de toda a luz, de toda a luz morrer. Ainda e sempre a morrer.

jtf

12.8.06

XVI

A janela mostra-me os carros como formigas de cova em cova. De minuto em minuto. Param, arrancam, param outra vez. Minuto sobre minuto, num baloiço amorfo de vitórias antes das derrotas que serão triunfos também. Voltarão a arrancar, por certo. Assim eternamente. Em repetições ao ritmo de pendentes solavancos dos passos dos chispes no chão. Não sei bem quantos carros vejo agora pela janela, uns cinco, junto ao semáforo da cabeceira da minha casa, talvez uns cinquenta. Sei lá. Nos moles segundos em que escrevi estas sete frases pararam e arrancaram e pararam uns vinte, Para quê?, andará todo este mundo de caras e de volantes a parar e a arrancar para chegar a ser feliz?
Numa agitação de sumo concentrado,
- Agite bem antes de abrir
, jorram os rótulos estatelados na testa das pessoas de rua, como recomendação das fábricas da carne e da ossada. Ou será que correm para ir sendo feliz? Não sei, volto a não saber. A parar e a arrancar para voltar, tempo pisado, a parar num semáforo verde-claro de fortuna que em luzes sibilantes gritará,
- Felicidade! Chegou.
Não sei se gosto da felicidade. Não sei se me apetece parar e arrancar como os carros da rua. Acho que vou sendo feliz, apenas. Vou sendo,
- num contínuo fosco de passados e de futuros de que só sentimos as sombras cinza. –
Para se no caso de perguntarem,
- E tu? És feliz?
, acho que respondo que sim sem saber muito bem o que significa sê-lo, engasgar-me-ei com o tropeçar das palavras na língua e na saliva, rasteirado pela vida maculada de rotina amorfa e ferrugenta e trôpega de constância. Acho que devo ser feliz, mas não sei. Agora não o sinto, a luz áurea do sol envergonha-se comigo,
- nesta mesa de café branca de plástico árido e estéril –
, os sorrisos escondem-se quando os procuro, as palmeiras vão-me ofuscando as réstias de festa que hospedei em tempos. Em tempos. Houve tempos em que guardei no bolso as festas de outras vidas. Em tempos.
Mas acho que devo ser feliz, afinal não me irrito com respirar, nem com comer. Não me canso de olhar para ti, Joanna, quando me pedes que o faça. E até gosto de dormir. Mas o Tempo afinal vai passando. Vamos ficando a gostar menos de dormir,
- cabeceamos, dormitamos apenas –
, vamos suportando pior o frio dos invernos mais sisudos, aqueles que não sorriem,
- mantinhas sobre as pernas mesmo no verão, o Tempo afinal passa e as artroses batem de vez à nossa porta com o nó do dedo médio na madeira, que timbre –
, o respirar é amargurado de cada vez mais difícil, o apetite é sofrido de cada vez mais diminuto. O Tempo vai passando,
- o tempo pisado –
, agora até vamos menos vezes ao teatro e ao cinema. Estarei enganado ou adormeces no cinema,
- afinal também gostas de dormir , que eu sei –
, gravitas numa nuvem enquanto a legenda, na barriga do grande ecrã, te desperta sussurrando,
- Acorda para a vida, Mary
, mesmo não sendo uma mary, finalmente também acordaste chicoteando o bicho teimoso da latência, sonolenta, os olhos a colar a meio nos pêlos convexos, as mãos suadas da viscosidade que só o sono nos dá, as pernas na posição dos latentes em exercício de sustento, sonolenta. Também tu só acordaste quando o verde do semáforo te deixou que acordasses, quando te murmurou alto,
- Chegou
, julgo que também não saberás responder a,
- E tu? És feliz?
, tropeçarás num sim sem saber o que traduz, a saliva e a língua atrapalhar-te-ão a sinceridade do impulso, cairás na rasteira que a bolorenta inércia dos nossos dias te alongará no chão. E esperarás, com as pernas na igual posição dos latentes, com as mesmas palmas pegajosas do suor do sono,
- também os olhos colados nos pêlos paralelos –
, que um semáforo te grite ao ouvido como anúncio de lotaria,
- Felicidade! Chegou.
Que diabo, afinal até suporto respirar, até gosto de comer, até desejo olhar para ti, Joanna, mesmo quando nem me pedes que o faça.
Eu até gosto de dormir.
Nos melhores dias até fico a pensar que já
- Cheguei.

jtf

2.8.06

XV

Quando os sons das folhagens escorrem vagarosos, medindo o comprimento dos ramos,
- num burburinho que chicoteia a ursa modorra, aqui dentro –
, a ânsia atravessa-me a espinha até à furtiva sala do sangue. Há indolentes tardes em que, deitado sobre sofás de angústia em molho pesado, alinho o exército de eus que me habitam os quartos da mente, cá dentro. Bem dentro. Gosto de imaginá-los como golfinhos soltos, como aves lacrimejantes em voo rasante, como cães enegrecidos pelo refugo dos dias e dos anos,
- e das almas e das gentes –
, os meus eus todos juntos, em risota esticada, Qual deles será o que gosta de ti, Joanna? O que gosta de futebol e de cerveja? O que gosta de rolexs e de ferraris? Ou o que gosta de futebol e de ferraris? Ou o que gosta de rolex e de cerveja? Respondi alto, com a voz que vomitava as dúvidas do cimo da testa, enquanto circulava o pó do café no leite quente, borbulhando,
- Não sei, acho que é uma salada-russa de todos.
, pensei eu. Convenci-me da resposta com um gole que fervia na faringe, quente. Quente,
- ganiam em brasa os capots dos carros no estacionamento espinha do Rossio –
, estava muito quente, a ferver, eu transpirava como criança joga à bola, escorria já. Resolvi esconder-me do sol, massacrante, que nem bombas em guerra ferina, ocultei-me num banco de jardim debaixo da ramagem cansada, ferida pelo refugo dos dias e dos anos,
- as folhas em ruídos sofridos, em sussurro latente zurzindo a ursa –
, uma mulher desfila em direcção ao eu que gosta de ferraris, senta-se a dois palmos, cruza a perna como nos filmes,
- com os olhos dos filmes, as mãos dos filmes, o respirar dos filmes, cadente –
, a tíbia nua como cútis de bebé verde, saia curta,
- só o necessário –
, julgo ter uns trinta anos, mero instinto, pela maneira como cruzou os membros, pelo perfume que me abafou as ventas de hálito gordo, pelo arrebatador enrugar de pele no canto exterior das vistas,
- Deve ter uns trinta e poucos.
, congemino o palpite dentro dos miolos, que iam fervilhando nas brasas do astro. Sem que o calor abrandasse, os dois palmos tornaram-se um, de um ficaram quatro dedos, até que apenas um envergonhado mindinho nos desligava as pernas. As dela cruzadas com a mestria dos trinta. Inopinadamente o calor subiu para o dobro. Tocámos as pernas, a minha esquerda na direita dela, quente, a ânsia atravessou-me as costas e entrou pela casa do sangue a dentro, quente, o exército de eus berrava como peixeira de mercado, a quente. E eu senti-me gente finalmente, útil como animal reprodutor. De branca verdade que não me agitei. Um olhar,
- ainda que cerceado pelo escuro dos óculos –
, voltou a atravessar de ânsia a espinha, como zumbido de vento nas folhagens, como transitando nas pernadas do castanheiro velho, medindo-lhe os braços, em cima. Acima. Levantou-se como torre secular, apanhou o cabelo com as duas mãos, atrás, dez dedos dançando num bailado ao ritmo do dourado da pele,
- a mesma mestria dos trinta nas mãos, sardentas de perícia –
, algemando-o num elástico preto, atrás, caminhou e esfumou-se ao longe, ao longe. Para longe. Para não mais voltar.
Ainda hoje, Joanna, volto ao Rossio, ao banco do castanheiro estafado, no embalo de voltar a encontrar o escuro daqueles teus óculos, o toque das tuas pernas de bebé esverdeado, a saia curta e o sufoco do perfume a esmurrar-me a cara. Volto na esperança de te voltar a conhecer, Joanna, de sentir a tua perna direita a beijar a minha esquerda pela primeira vez. Ainda hoje oiço o timbre das folhagens a chicotear o urso torpor que mora cá dentro, a ânsia que me atravessa a espinha até ao centro do peito. Ainda hoje alinho todos os eus que me habitam as mãos e os olhos quando me pergunto,
- Qual deles será o que gosta de ti?

jtf