15.6.06

XI

- Vens jantar, Henrique?
, enquanto o zumbido deste ponto de interrogação, num rosnar de hipopótamo gigante, me vestia a cabeça de incertezas de rocha, imaginei minha mãe sentada. Cotovelos simétricos sobre a mesa. Olhos de mármore, imóveis, entupidos pela cova das mãos. Na posição dos mudos em tumulto por dentro. Como ginástica contra o medo da perda. Da perda, aos poucos, aos poucos. Contra o ralo de afectos em sumiço. Mole por tão sozinha. Resignada por tão esculpida pelo meu desprezo bárbaro. Num silêncio de monge tibetano em oração de refúgio. Contestando a minha ausência com latência de hiena. Eriçando o sangue, que no fundo era o meu, o sangue que me injectava facadas no coração quando lhe disse
- Não, mãe, hoje não janto. -
, e ela numa revolução funda, cavada, guerra civil com mortos e tiros pelos lados todos. Fixando o prato circular, redondo, bola de neve de nadas, ciclo vicioso de carinhos nulos, campo de batalha com o apetite ausente, luta com o alimento que não queria, certeza de que o que afinal a alimenta é a minha presença de seiva, a comer a seu lado, a comentar que a televisão só dá desgraças, a opinar sobre o jogo da bola, a desdenhar o afecto alheio,
- mesmo que imaginado, fantasiado -
, a esconder problemas no trabalho, para não inquietar. Ela, a ver a vida a recuar, a minguar, ainda por cima sem mim a jantar com ela, Onde é que já se viu?, o maior de todos os desgostos, a troca, permuta por outra, mutação de cavalo para burro
, e só porque fui ter contigo, Joanna, que por certo não jantarias sozinha se eu não fosse, por certo não descansarias os cotovelos, em simetria, na madeira da mesa, por certo não esconderias as vistas com a fossa das mãos, por certo que não, que terias alguém para comentar contigo a pequenez da televisão, o fora de jogo do número 9. Por certo que não, eu sei. Mas mesmo assim, numa resposta de cão rafeiro, envenenado por uma cegueira de venda negra,
- Não, mãe, hoje não janto. -
não, soa-me tão mal agora, e fui jantar contigo, deixei o que realmente merecia o meu sim plantado na mesa da minha infância, que merda, deixei quem realmente me consegue amar sem pedir troco, sem sequer que eu saiba o que isso significa. E para quê?
, para me dizeres, de boca tolhida de duplicidade cheia,
- Não posso ir jantar contigo, a minha mãe está sozinha em casa.


jtf

4.6.06

X

carta à infância.

Neste instante, desempregado de sentimentos. Agora, junto com o negro fundo, a respirar silêncios que choram comigo. As coisas estão inertes, como agarradas pela gravidade que nos puxa para o fundo. Os móveis, os livros, os sons, as portas e as janelas, os estanhos ao centro da mesa pesarosa, as rendas pendentes no varão, em cima. Tudo congelado pelo nada que nos ocupa. O nada.
- o nada que me faz pensar nisto, em ti -
Há vozes ao longe, não muito, são como passos a arrastar os calcanhares da vida para dentro da sala encalhada. Não entram. Na janela, brecha de mundo sério, vislumbra-se, pelas fendas que a cortina ainda autoriza, a escola dos pequenos. Mundo de silêncios nenhuns. Em baixo, no largo de terra castanha-clara, um pequeno gira pedais de triciclo,
- o mundo dos grandes resolvido sobre três rodas, a girar -
, três saltam a uma corda de sonhos que ainda nem sequer sabem que virão a ter, cinco escondem-se uns dos outros sem sequer saberem que é isso a vida dos adultos. De quando em vez experimenta-se o vento, leve, em granulado insistente que alivia o calor das mãos. Afasta, com dedos de bisturi, as folhas caídas do chão, mortas. Folhas que só sentimos findar na queda. Ao centro dos olhos,
- recordo os gritos do exército de pequenos ali ao fundo, na escola -
sonho com folhas a nascer para nunca cair, sonho com lâmpadas acesas noite dentro, sonho com beijos longos que nunca descansam, sonho com terras castanhas-claras com crianças sempre, sonho com pessoas a espantarem-me com a bondade alheia, sonho com gelados em noite de caldo, sonho com livros que nunca irei devorar, sonho com terras que nunca irei pisar, sonho ser Pessoa e Eça simultaneamente, sonho com ferraris à porta, sonho com o odor a batatinhas pequenas do almoço na avó,
- entra, sem portagem, o cheiro pela testa acima, como afago em aroma cheio-
, sonho com amendoins na esplanada, sonho com escolas com meninos muitos, sonho ser escritor, ver o meu nome numa capa, sonho que não haja sonhos impossíveis, sonho que voltarei à escola, com terra castanha-clara, girar os pedais ao mundo, saltar a corda dos sonhos que serão um dia, esconder-me de todos os rostos para poder dizer-te que só te quero
- não sei se entendes, Joanna -
só te quero a ti.
jtf