13.1.07

XXIII

tudo arde e há cinza que cai sobre as coisas.

Agora, a casa subitamente vazia de sentido, será do meu olhar ou as árvores do lado de lá da janela já não mexem como antes, será do meu olhar ou o sussurro do vento em sinfonia com a chuva já não baloiça como antes, como antes, quando um nevoeiro de charuto me enjoava as vísceras ao ponto de não comer, ao ponto de me imaginar vomitando dias a fio, antes, quando os domingos de manhã cheiravam a jornal pela casa toda, o sofá da sala amassado com um corpo embutido mas sem corpo lá, antes, quando as janelas se abriam para a luz das árvores e o som do vento, antes, terá sido antes de olhar para a minha mãe que ela me pousou a mão na nuca, não a vi mas era mão de mãe, eu sabia, pousada com a compaixão da dor mais alta, o peso da mão agasalhando num alivio de amparo, foi nessa altura que senti o peso de uma mão de mãe desdobrar-me palavras sobre a cabeça, soletrando à força de afecto, à força de dedo, gaguejando o,
- Não se sabe o dia de amanhã
, que repetia todos os segundos, que não conseguia esquecer, que me atormentava a alma, sentado numa cadeira de madeira sombria, velha como comboios-a-vapor, era de dia mas tudo estava preto, as roupas, os olhos, as mãos, encaixadas na posição dos devotos, parecendo que todos falavam a alguém com as mãos encaixadas sem que dissessem o que quer que fosse, apenas um zumbido de igreja que me amornava por dentro, que me amansava o vulcão do pânico, e eu sentado de lado na cadeira, no corpo mole dos descrentes, dos derrotados, só pensando na resposta a,
- De que vale tudo isto?
, sentado, as pernas juntas e descruzadas do lado direito, os cotovelos pousos nas costas da cadeira e as mãos enterradas no rosto, sem chorar, sem falar com o alguém com que se fala de mãos encaixadas, dedo-entre-dedo, e só pensava no sussurro das beatas em eco no ouvido, ecoando todos os instantes,
- Não se sabe o dia de amanhã
, a minha mãe vestida de negro,
- nunca antes o negro lhe cobrira o corpo –
, quase que se via o mundo todo sobre a cabeça dela, no peso de quilos e quilos de tortura, os olhos num carvão como nunca os vi, as mãos encurraladas como mortas pelo sopro de uma noite que não amanhecerá, que não amanhecerá nunca, mãos feridas pela falta de chão, sustida de corpo no ar, como que me dizendo sem dizer,
- O que vai ser de nós filho
, e eu só pensava que Não se sabe o dia de amanhã, só pensava nos gelados de baunilha e no cheiro a jornal dos domingos que foram, só pensava na vontade de vomitar e no charuto a vexar o apetite querendo que voltasse, querendo voltar a puxar-lhe a manga da camisola com força e gritar de um só folgo,
- Quero um gelado pai,
, mas a noite caiu, os olhos fecharam-se, as roupas e as mãos negras, um sussurro de igreja oprimindo-me as dores e a mão da minha mãe na nuca. Olhei-te, Joanna. Vi nos teus olhos o negro dos meus, também tu falando calada de mãos encaixadas, escuras, vertidas de palmas para cima, afirmativas, vi-te e vi em ti os pais que seríamos, vi em ti os olhos imensos de um qualquer Francisco ou Isabel pequeninos, correndo e chorando durante a noite, a chamar-nos pais, a pedir gelados em gritos de um só folgo e puxões de camisola à força de dedinhos, e aí pensei que esse seria o meu dia de amanhã, essa seria a resposta ao,
- O que vai ser de nós filho
, mesmo que agora a casa esteja subitamente vazia de sentido, que o olhar não veja as árvores mexer como antes, nem a sinfonia do vento com a chuva se oiça, mesmo que um dia me volte a sentar de lado numa qualquer cadeira sombria, com os cotovelos vergados e as mãos sepultadas no rosto, perguntando para dentro, bem para dentro,
- De que vale tudo isto?
, sem saber responder, sabendo apenas que um dia, um dia qualquer, os domingos de manhã serão com eram antes.
Serão como eram antes.

jtf