19.9.06

XX

Acontece por vezes não sentirmos o que devíamos nas alturas que devíamos, acontece, trocarmos os arrepios por tédios, acontece, esconder furações com panos de planície, acontece, moldar faces puras em olhos de assassino, acontece, espalhar branco em terras negras, acontece fazer de promessas enganos, fazer de noites dias, fazer de loucuras certezas, de incertezas desejos, de desejos arrepios e tédios, furacões e terras negras, promessas e noites, loucuras e certezas até, acontece, fazer acontecer o mundo girar nos dedos de uma mão velha de sangue, velha do desejo e do azul fantasioso da ilusão.
Ontem fomos a casa do Afonso, sempre senti o Afonso como parte da nossa vida, não sei bem por que razão o sinto, mas, de facto, nem tudo se explica, nem tudo se conta,
- Quero contar-te uma coisa, nem sabes da melhor, Joanna
, dizia ele sentado ligeiramente de lado no sofá mono, castanho, em velhice arrastada, as mãos juntas, pousas sobre as pernas descruzadas e quase disformes, uma mão de costas para a palma da outra, os olhos numa inocência de padre, em confissão do pecado, como encenando a revelação da luz, a luz, O que é a luz?, nunca soube responder com acerto, a minha luz é caminhar, não ter fim, não ter cansaço, não incharem os olhos de dor, não sucumbirem as pernas de torpor, não congelarem as mãos de frio, O que é a luz?
- Joanna, nem sabes o que aconteceu à Fátima
, era em frases como esta, em intimidades como esta que sentia o Afonso como parte da nossa vida em dueto, Joanna, numa cumplicidade sem que isso implique interesse, numa conivência de que nunca senti o menor ciúme, numa moldada face inocente sem olho de assassino. Eu ficava calado, fechado em mim quase sempre, sem mover as mãos, suando paradas, ouvindo aquele encaixe de alma, não carnal, não físico, nunca físico. Nunca. Fiquei quase sempre calado, apenas quando disse,
- Posso só mudar de canal, Afonso, não suporto estas novelas
, de resto nada disse, nada comentei, nada quis alterar àquela metafísica benquerença absoluta, Acho que nunca soube verdadeiramente o que era olhar para alguém assim, falar para alguém assim, dispor as mãos assim,
- pousas nas pernas descruzadas no sofá cediço, que verdete –
, no fundo acho que sempre senti inveja dele por isso, é mais controlado, menos vendido à carne do que eu, menos corrompido e menos alienado do que eu sou. Sou, eu sei, não há que esconder. Mas talvez aconteça não sabermos sentir o que devemos nas alturas que devemos, trocar invejas por desejos, trocar olhos por mãos, cinzento por preto, dias por noites, inocentes por assassinos, desvarios por verdades até, acontece, fazer acontecer o mundo girar apenas na nossa cabeça sem nada dizer nem nada fazer nem mesmo nada sentir a não ser restar-nos ouvir o centro da terra sugando com força, com a força do fim e perguntar,
- O que é a luz?

jtf

6.9.06

XIX

Está frio, não sei se só está frio dentro de mim, mas está frio, lá fora o frio frequenta a chuva nas vidraças deslizando, o vento nas ramagens adultas, a neve nos muros pedra cubo, cá dentro o frio é outro, é um cancro que tolhe o cheiro a cinco anos, o largo da primeira escola, o pó que engoli a jogar futebol no largo, o cheiro a aeiou misturado com pensos a esconder feridas, arranhões, o cheiro a mapa de Portugal bolorento de estado-novo enforcado em triângulo num prego pobre, as cadeiras de madeira rudes e pequenas, a mesas à escala iguais, o timbre em corneta para o intervalo, e está frio, frio que é um cancro que esconde os primeiros bilhetinhos para a mesa de madeira rude e pequena da frente, os primeiros olhos de menina de que gostei, o aparelho que usava para coordenar os dentes e que lhe atrapalhava os ditongos na boca, a professora de bata branca à médico explicando que,
- M vem sempre antes do pê ou do bê
, nunca mais me esqueci, professora, se calhar nunca mais esqueci porque também nesse dia estava frio, lá fora e cá dentro, talvez porque já aí soubesse que sentiria falta do pó a aeiou desse tempo a salpicar-me o nariz até espirrar, em que sentia o mundo abreviar-se a jogos de futebol, a bilhetinhos para a mesa da frente, e está frio, imaginasse eu que o cheiro a trinta anos é outro, que os jogos não são de futebol mas de intriga azeda, que os bilhetinhos de mão em mão são outros, menos honestos e menos brancos, está frio, os gatos encrostam-se nos carros como trincheira para o ataque do frio inimigo, as coisas nesta sala estão sossegadas, serenas, os móveis, os livros, as canetas trémulas no balde miniatura, as fotografias a fazer lembrar o cheiro a cinco anos e o largo da primeira escola, está frio, quase ninguém lá fora, quase, apenas pernas e guarda-chuvas a desandar da chuva fria, o vento nas ramagens reduzindo as memórias a pedra cubo, acabada e fria, a televisão apagada, o livro do Umberto Eco fechado esperando vez, apenas uma luz de candeeiro de pé ateada lembrando que o túnel tem fim,
- e terá mesmo fim? -
, o pescoço encaixado no sofá, dúbio de amarela esperança, cabeça para cima e fixando o tecto, o silêncio doía-me, o cheiro a pó do recreio da escola que descia da cabeça até ao nariz doía-me, há alturas em que tudo nos ofende e tudo nos dói, até o frio. O gelo continua a fermentar lá fora, já não o sinto como antes julgo, já não me fica entranhado no branco dos ossos nem no castanho dos olhos, talvez o que me tenha ficado foi o olfacto a cinco anos, o pó que engoli a jogar futebol no largo até espirrar, o aroma a aeiou e o mapa de Portugal caduco a cheirar, o,
- M antes do pê ou do bê
, o cheiro a cinco anos dentro das narinas e, talvez, porque estava frio, dentro e fora, e só porque estava muito frio, o aparelho torcendo os ditongos na boca. O que queria hoje era voltar a não sentir frio cá dentro, voltar a reduzir o mundo a um jogo de futebol de ganhar e perder, voltar a espirrar com o pó do largo e ter honestidade de mão para te escrever bilhetinhos a dizer,
- Joanna, os teus foram os primeiros olhos de menina de que gostei
, enquanto choram as gotas na minha vidraça, enquanto não chega a noite que me fará não sentir cheiro nenhum.

jtf