24.2.07

XXIV

Mais dia menos dia o som da nossa respiração, ecoando por dentro dos dedos, das pernas, dos braços, rosnando dentro do peito, subindo pelo pescoço e contornando o queixo, alastrando pelo território da carne, alastrando, mais dia menos dia esse som deixa de pulsar por nós, deixa de ecoar, e de rosnar, deixa de subir e de contornar, deixa, aos sessenta anos o silêncio da respiração não tarda, não tarda em aparecer e calar o fôlego com um sopro tão negro que chama-lo negro seria pouco, tão negro, tão negro, na sala onde agora há móveis como personagens de outras vidas,
- outras que não a minha, apesar de ter estado nela, outras –
, móveis com bocados do meu pai entalhados neles, as curvas, a lisura das gavetas tão gastas de abrir e fechar,
- que me lembro em pequeno abri-las e fecha-las procurando rebuçados –
, o castanho deprimido da madeira, as portas meio encravadas pelas dobradiças do tempo, uma espécie de poeira cinzenta que teima em não diluir-se, e teima e teima, e um ar pesado a sufocar a respiração à força de lembranças, à força de relógios tocando Bach, a minha mãe, agora velhíssima, subitamente velhíssima repetia quase como ponteiro dos segundos,
- A vida assim não faz sentido,
, lembrando-se quando ainda havia música, quando as roupas ainda a encadernavam de cores, quando a casa ainda pintada de azul e magenta rosnava músicas dançantes, mas agora, agora A vida não faz sentido, não faz sentido porque mais dia menos dia o som da respiração calar-se-á, o pouco sentido que a vida ainda tem calar-se-á, e eu sem saber se responder,
- Anime-se, claro que ainda faz sentido,
, sabendo muito bem que era mentira, sabendo muito bem que inventava um sentido que nem eu próprio sentia, que bem vistas as coisas eu próprio diria que não faz sentido nenhum, bem vistas as coisas me escondia numa serra de disfarce mentiroso, mentiroso. A casa envelheceu depressa, a avidez da humidade esculpiu as paredes, agora escuras e com musgo aos montinhos, dispersos, a madeira dos caixilhos ferrugenta, o que se via das janelas envelhecera também, os carros na estrada pareciam-me agora tristes, os movimentos murcharam, os passeios pareciam infelizes, como que chorando connosco, como que sendo parte da nossa dor e da nossa vida, uma espécie de cheiro a passado pairava, e quando entrava nesta casa parecia que tirava os sorrisos das possibilidades do rosto, uma espécie de proibição oculta, tão oculta que chama-la oculta seria pouco, uma espécie de,
- A vida com sorrisos não faz sentido,
, aos sessenta anos o silêncio não tarda em gritar eu sei, pode ser que o corpo dele tivesse sessenta anos mas para mim tinha vinte, e muitas vezes
- quase todas, diria –
, tinha sete, tinha animação de menino, tinha espanto de miúdo e voracidade de criança, espantava-se, admirava-se, fazia figas quando mentia, entrava sempre nas portas com o pé direito em riste com medo do azar, ficava horas a olhar a alegria dos carros através da vidraça. Bem vistas as coisas o meu pai não tinha idade, ia tendo idades, ia tendo, já não tinha muito cabelo, branco, as costas começavam a lamentar-se em voz alta, a memória para os títulos dos filmes e dos livros embranqueceu, tinha frio mesmo no verão, mas contudo continuava a saborear o fumo do charuto como na primeira vez, olhava para os olhos da minha mãe como na primeira vez que os olhou, acho mesmo que ainda acreditava no pai natal e na cegonha de Paris, acho que sim. A minha mãe vivendo sem viver, com dois risquinhos a fazer de lábios que já não desenhavam sorrisos há que tempos, a conseguirem ainda a custo dizer,
- A vida assim não faz sentido nenhum,
, e bem dentro de mim a respiração a soluçar, a arfar no ardor do inseguro, a percorrer as pernas e os braços aos gemidos, aos choros, como que concordando com ela, como que resignando-se a um negro tão negro, tão negro. Tão negro que me fez imaginar a morte a apontar-lhe o indicador naquela noite como que dizendo,
- Tu aí,
, e ele a inclinar o pescoço para cima como que desafiando-a e soltando uma nuvem de fumo na cara dela, tão grande e tão bela que a respiração não teve outra opção senão calar-se. Senão calar-se para sempre.

jtf