19.10.07

XXIX

Um domingo miserável por semana e seis dias gigantes inteirinhos para ser feliz, Não sei bem por que razão bocejo, abro a boca numa oval enorme, entoo o grito que o acompanha, pisco uma duas vezes os olhos, aperto os canais do nariz, coço o cume da cabeça com a ranhura do dedo indicador enquanto outros três se arrepanham como patas de caranguejo, Sempre gostei dos domingos, significavam fins e não princípios, significavam sentar e não caminhar, dormir e não acordar, Desde que me lembro de mim que gosto de dormir, dormir é como encontrar a perfeição no escuro, ler livros no escuro, quadros no escuro, ouvir partituras no silêncio, é tão mais saboroso distinguir um Sol de um Ré na penumbra do silêncio. Volto a alçar o articulado do braço por forma a coçar o fim da testa com a proeminência do indicador, sabe bem coçar a testa quando tocam campainhas cá dentro, Não sei bem por que razão gosto dos domingos, mas a verdade é que sempre gostei deles, da mesma forma como gostava do meu pai sem saber muito bem dizer a razão, Era um homem alto, porte real, falava pouco e quase sempre com os olhos, arrogantes e minguados que gritavam num silêncio de monge, para além disso detinha-se horas e horas olhando os quadrados da janela contando carros como quem conta feijões, talvez goste dos domingos por serem compridos sendo ao mesmo tempo da longitude dos outros dias, ou por me fazer sentir de repente no corpo de um homem grande e hirto olhando carros tristes e deprimidos que cirandam lá fora, O relógio gosta dos domingos também, aperta os canais do mostruário ao som de tique-taques, coça as doze horas com a ranhura do ponteiro dos minutos enquanto o das horas se arrepanha bocejando, Durante muito tempo o cheiro dos domingos era uma mistura de silêncio com cabrito assado no forno, Tal como tempos mais tarde o cheiro a café-curto era para mim claramente o cheiro a Portugal,
- É uma bica, por favor
, nesta altura da vida tenho muito pouca vontade de viajar, aborrecem-me as vozes embaciadas dos pilotos-de-pássaros, soletrando temperaturas e anticiclones como quem reza em voz alta, inquieta-me o arrastar das malinhas como quem arrasta caniches e dálmatas, estafo-me com os países ricos e desenvoltos pespegando ordens para os pequenos tal qual pais a filhos,
- Portugal José, faça o favor de fazer os trabalhos de casa e cama
, cansa-me não ouvir português em todas as esquinas, e não zunir com a vibração de uma guitarrada espontânea, encantadoramente melancólica, e ainda mais inquieto fico quando a rotação do pescoço não alcança uns cubos de pedra azul-e-branca no chão que dizem que só há por cá,
- Desculpe, o cafezinho é com adoçante, por favor, desculpe lá
, de maneira que viajo pouco, contento-me em admirar homens e mulheres pequenos e feios e não altos e loiros como no norte, conferir o circular de autocarros amarelos serpenteando o empedrado da cidade tal e qual carrinhos de brincar, e gargalhar a todo o vapor sem mexer sequer os beiços, proclamando na testa em luzinhas coordenadas,
- 720 Picheleira
, ou até uns outros agarrados ao chão seguindo linhas, e fixos por cima como aranhas,
- 28 Graça
, chiando tanto nas travagens que de repente até me fizeram imaginar melodias aguçadas à força de goelas, Delicio-me ao caminhar ruas aleatórias e ouvir,
- Ó Ermelinda, não fazes ideia, mulher, é que esta situação faz-me espécie
, sem conseguir muito bem saber o que significa espécie na expressão porém posso jurar que sei perfeitamente, Roupa interior, lençóis, paninhos e lenços de assoar fixados com molas multicolor em cordas ovais que chiam também, Os diminutivos a saltitar felizes de efervescência,

- Cafezinho, chazinho, pastelinho, jeitinho
, julgo que na verdade é dos diminutivos que tenho mais saudades, minguando as ideias, os problemas, inho inha, confortando-os com festinhas e afectos como que abreviando-os,
- Gosto de ti, Joanninha
, e no fundo olhando esta parede branca regresso a um domingozinho qualquer enroscado em tantos outros, um domingo insignificante por semana, e bem vistas as coisas seis enormes dias inteirinhos para ser infeliz e ver escurecer depressa, Não distingo um Sol de um Ré, Estico os espaldares reproduzindo o porte real de pai, Falo pouco e quase sempre com os olhos, tão altivos e diminutos que gritam só por si, e congelo-me horas e horas olhando os quadrados da janela contando carros como quem conta feijões.

jtf