2.8.07

XXVII

No próximo Outono o som da chuva a bater no beiral será outro, não sei ao certo porquê mas parece-me que será outro, é uma sensação que vem cá do fundo, gotas despegadas, acordes dispersos ao longo do alumínio, nem fortes nem fracos, gotas, o picotado que as pingas vão fazendo ao cair sobre o telhado, vão tombando ao sabor de uma nuvem azul-lilás que sobrevoa a casa com uma altivez de rei, Há dias em que penso que só chove dentro da minha cabeça, e os Outonos sucedem-se à velocidade de foguetões apenas dentro de mim, depois paro de pensar e percebo que o segredo da vida é esse, precisamente esse, resumimos o mundo todo a um único habitante, Mas julgo que no próximo Outono conseguirei perceber por que razão o som da chuva muda de ano para ano, por que razão há fantasmas que rezam durante a noite, por que é que umas pessoas gesticulam quando falam e outras não, e umas olham nos olhos e outras não, O que faz as pessoas caminhar de forma diferente? O que faz umas conversarem sozinhas e outras em bando, multidão?, Dou por mim muitas vezes tentando atravessar janelas e adivinhar o interior das casas, descobrir-lhes o intestino, vasculhar os movimentos um a um, calcular as pessoas que gesticulam e as que não, as que olham nos olhos das outras e as que não, e ficar nisto horas, horas sem fim, calculando por que razão não sou o único habitante do mundo, Um miúdo pedala ao longe a bicicleta com uma harmonia de bailarino, três pardais poisam no chão formando uma estrela com as posições, prateleiras, livros empilhados em torres grandes e pequenas, uma piano encostado à parede que jamais desenhou uma nota, um cesto de vime com pêssegos acabados de apanhar, sinto-te pentear o cabelo e fico em paz por senti-lo, muitas vezes fico em paz só por te sentir Joanna, não sei ao certo porquê mas parece-me que só de saber que estás perto, de saber que te mexes, que respiras, que falas e andas, só por isso fico em paz, e contudo
- Isto assim não dá, Henrique, não dá
, e as gotas nem fortes nem fracas picando a quietude de uma tarde de Outono como esta, ao pensar no sentido do mundo lembro-me do meu pai,
- na verdade lembro-me sempre do meu pai quando penso –
, recordo os almoços de domingo, das mãos da minha mãe manuseando talheres com uma destreza de pianista, as pretas e as brancas tecla a tecla, as mãos do meu pai pousadas sobre a mesa com os dedos dobrados a meio por baixo da palma da mão, quase formando o coração com a posição do punho, só tornei a ver essa posição de mãos mais tarde no hospital, as mãos ofegantes como que querendo desenhar um adeus sem conseguir, sem conseguir, um adeus, Há dias em que saio de casa confiante em encontrar o meu pai, sentado, na casa dele, encaixado no molde que a poltrona tem há décadas, ao olhar a poltrona lembro aquelas formas com que a minha mãe fazia os bolos em miúdo, e ele embutido como um bolo-de-bolacha, esticando o jornal em frente do corpo fazendo com que ao longe só se vissem as pernas e uma mancha de papel e letras e fotografias tapando o resto do corpo, quando baixava a mancha-de-papel dava-me a ideia que sorria e eu comovia-me, quase de certeza que não sorria mas eu lacrimejava na mesma, na mesma, houve uma altura em que pensei começar a fumar charutos como ele fumava, não sei bem porquê mas julgo que no fundo queria viver com ele dentro de mim como que fumando-o, De modo que aqui estou, ouvindo gotas despegadas, acordes dispersos ao longo do alumínio, escutando a chuva batendo no beiral com a esperança que no próximo Outono consiga perceber por que razão o som da chuva muda de ano para ano, E gesticulo os dedos da mão tentando formar um coração com eles.

jtf