28.3.06

VI

Não consigo pensar com limpeza no dia em que entraste nesta casa pela primeira vez. Não, porque nunca entraste verdadeiramente. Nem muito menos abriste a porta mestra de mim próprio. Talvez tenha sido eu que nunca te dei a chave. Ou nunca a tenhas verdadeiramente desejado. Eventualmente contagiada pela astilha venenosa inoculada pelos tentáculos do pavor profundo. Como balas cadenciadas pela sístole do meu coração no peito teu. Nas sílabas que te escrevo nos ouvidos para que a diástole se apodere da nossa alma vitalícia.
Continuamos insistentemente a pelejar em frente do espelho, reproduzindo em diminuta escala os sentimentos mais masoquistas que alguma vez comentámos nos outros. Estamos aturdidos, Joanna. Pela aleatoriedade que a junção dos nossos olhos, no rescaldo do silêncio, encerrara nos meus braços, articulações da mais cavada dor. Fingimos que o que casualmente nos afasta os olhos, os silêncios, não tem importância. Mas, no fundo, tem a importância máxima de não lhe confiarmos intrepidez alguma. De, sem sequer lhe fixar a frontaria ao meio, lhe desprezar o valor externo. Interno a nós dois.
Queremos ser felizes, Joanna, sempre o quisemos. Os obstáculos impedem-nos de ver que aquilo a que não vamos dando importância pode, quando o caminho não o denunciar, não nos dar importância alguma. Ainda não temos a arte de pressagiar o incerto, nem ver o que está oculto. Mas a latência pressupõe, afinal, a existência.
O que de mais rasteiro me fala cá dentro é ver que nenhum dos
corpos com mente, que são quase todos os nossos amigos, nos acompanha nesse teu ser feliz. Nem, ainda pior, no meu querer ser feliz. Todos eles nos desaparecem do raio que os nossos quatro braços desenham à minha volta, das mãos, da vista, da cabeça. Parece que vão todos para casa, escondendo aquilo que não foi criado para disfarce. Não consigo saber, convicto, o que está verdadeiramente certo. Se eles, que desistem do querer, se nós que acreditamos num querer fantasma. Não sei.
Ofereço-te os poemas que me mostraram o teu caminho, vieram comigo, são hoje como minhas mãos.
Gostava tanto de saber a verdade das coisas. Assim como pensamentos acabados e inertes. A lua descia até mim, um parque de relva e de pessoas, e eu imaginava que a minha terra era o teu chão. A minha alma era propriedade tua. Tomara eu, Joanna, conseguir pertencer a mim mesmo.

jtf

11.3.06

V

Naquele instante não havia percebido que aquele momento ficaria para sempre cravado na minha alma, como tatuagem perene. Quando tu, Joanna, tinhas os olhos amaciados pelo sangue em forma de laranja viva, redonda e doce, e me roubaste a metade que só tu poderias tirar-me. Como uma espécie de enóloga do amor, acreditada por mim mesmo.
Nesse dia, ao almoço, não me parecias tão feliz como normalmente. O outono da tua alma estava mais castanho do que usualmente estava. Parecia que tinhas os pensamentos congelados, os sentimentos atrofiados, paralíticos de pernas e braços. Mas nunca me teria ocorrido que os últimos fotogramas deste dia fossem pintados a um vermelho tão festivo como este o foi. Quando em voo raso, rosto redondo desenhado a compasso, olhos rectos inscritos a esquadro direitos à minha face, aterraste no meu ombro e me calaste a batida do coração, no segundo em que as palavras te saíram da boca. Senti um arrepio na veia cava superior, superiormente sensível aos sons que trocávamos. Nesse segundo o leito sanguíneo apressou-se a seguir para o ventrículo esquerdo, o mais forte para pancadas violentas, com a mesma celeridade com que a minha atenção se fidelizou na tua boca. Ainda estou a ouvir agora essas palavras. Claras, escorreitas e firmes. Como quem convictamente diz que dois e dois sempre serão quatro, mesmo que alguém o desminta. Com a mesma convicção densa, cheia, encostaste os teus lábios pequenos e sumários ao meu ouvido direito, o mais forte para sussurros convictos, que os esperava, antecipava e previa. Nesse minuto a voz saiu-te branca, sem falhas nem mudanças de entoação. Parecia que o sistema sonoro das tuas cordas vocalizava em alta fidelidade. Como sopro leve, flutuante mas continuadamente presente, insistente. Tão presente como o gato que nos ia olhando, encrostado na escuridão do seu canto. Conseguiste, sem que alguma vez o tenhas premeditado, fazer com que naquele dia eu visse finalmente o bilhete de identidade ao Amor, com data de nascimento e progenitores. Até aí nunca me tinha sido apresentado. Apenas o conhecia por catálogos distantes, remotos e profundamente fantasiosos. Nunca o tinha encarado de frente nem, muito menos, lhe tinha ouvido a voz. Finalmente percebi que nem tudo aquilo que nos possa parecer inatingível o será para sempre. Nunca antes tinha imaginado que seria possível ouvir-te, numa noite ordinária como tantas outras, dizer: «Não consigo viver sem a tua voz».

jtf

6.3.06

IV

Gostava quando o Afonso te sorria. Eram olhos de ternura, de carinho pelas linhas que te serviam de identidade. Não o puderia confirmar, nem provar, mas sentia que esse olhar era aquilo que de mais sincero e afectuoso ele te conseguiria dar. Uns olhos em formato de presente de natal. Com embrulho e tudo. Mas muito mais preciso e aconchegante, pensava eu. Ficava horas refastelado na poltrona desse canto da sala, habitat do gato que se ia deitanto. Como as nossas conversas, para não mais acordarem. Quantos milhões de euros daria eu para que alguém me olhasse com os mesmos olhos densos com que o Afonso te olhava o corpo? - equacionava eu em silêncio, num tumulto consumido internamente. Era um olhar paternal e protector. Como se um escudo redentor te cobrisse todas as células do corpo, não de aço mas de afecto. Não visível mas latente. Numa passagem escura, dura como espadas, bem dentro de mim assusta-me o grito negro de que nunca me irás olhar como ele te olha, Joanna. Esse grito consegue calar a volúpia por alegria, que ainda possa encontrar oxigénio para viver dentro dos meus pulmões. Consegue fumar alegremente a vida que ainda habita no canto da sala, em toda a casa. Consegue calar o caminho que vamos percorrendo para que numa manhã consigamos dizer 'bom dia' com a voz da convicção. Para que o despertador que encomendámos a nós próprios consiga acordar as conversas adormecidas, dormentes. E quando esse ar se acabar? Quando o cigarro acabar? Quando o caminho se encruzilhar? Quando o despertador se esquecer de nós?
Que faremos, Joanna?


jtf