20.5.06

IX

carta à bondade.

Nos pardos fins-de-tarde, onde a cabeça não escapa para fora do gargalo, onde os dedos não desenlaçam dos anéis, das manilhas sufocantes, fico recostado de costas arqueadas, sentado, com a cara paralela à tela da tv e o corpo em h descansando sobre o canapé. Dou golos no copo de cirrose, confinado na mesinha onde o óbito jaz em latência preguiçosa dentro do balde redondo. O sangue grita-me da parte de dentro do ouvido. Por dentro. Escondido na concha da orelha direita. A realidade em quadrado na tela em frente entra, filtrada por pestanas esquivas, tocada por mãos possessivas de unhas aguçadas. Passivo. Como imobilizado pelas tíbias mortas da quietude. Da renúncia desfalecida que morava num pescoço resignado pelo “não” gestual, para direita e para a esquerda. Nunca da cima para baixo. Porque em baixo está o desmaio. A posse da morte é um gato negro em tom de fundo. Fundo. O negro líquido no copo não deixa reagir a uma realidade fechada em quatro linhas. Em frente. Fachada de desinteresses amarelos.
Há sítios onde o sol é mais escuro. E onde a sombra é ainda vida. Ditosa. Aí, nos restaurantezitos onde as toalhas são de papel aos buraquinhos em relevo. Onde não gostavas que te levasse, Joanna. Onde entro, piso com o calcanhar o tapete de plástico com furos. Um letreiro com inscrições desafinadas avisa que caracóis afinal também há. Pena o h, ele próprio, não viver no dístico. É com o alfabeto de bondade que ali se escreve. Se sente. Entre o prato e o copo, ambos invertidos, um guardanapo separa o lugar da água do da carne. Televisão a um canto grazina canais menores, sentimentos mínimos, interesses grandes para conteúdos apoucados. Apesar disso a sombra ainda é vida. Vida acesa por luzes simplórias. Gosto de sombras que ainda acolhem contentamento. Gosto.
Do outro flanco do cosmos, com as luzes ao máximo, onde máxima felicidade por viver na sombra não desagua. Há sombras de todas as idades, todas as identidades. Cinzentas ou mais descobertas. Olhos mais nivelados ou mais esquivos. Muitos dos vultos ainda com trapos por decima, roupa de trazer por casa. Pijama húmido, pantanoso de dia-a-dia. Odor de monotonia amorfa. Apesar de insípida, acinzentada. Olhos de amplitude meia, por economia de zelo. Coragem. Na barragem onde a coragem escassa por enxugo assaz. Tudo tapado por urbanas praxes como biombos em pátria de fracos. Fracos onde o h existe mas não gravado com o abecedário da bondade mas da inveja intacta. Lembro o dia em que fui ao restaurante distinto, onde o sol é escuro por dentro. Onde a luz não alumia o sentir-bem. Lembro-me de um fato recto, preto como os guinchos que a tv recita cá também,
- nisto, os dois mundos, são pares. No pior, no mais pulha das vísceras deles. -
, por dentro do uniforme um homem polido. Polido por asininas etiquetas. Os movimentos são todos esquartejados pela norma. É norma dar os bons-dias mesmo que contrafeitos, mesmo que falsos. É norma agradecer mesmo que não exista a obrigação. É norma não dizer aquilo que se matuta mesmo que seja verdadeiro. Mesmo que sincero. O fato caía em ameaçador negro até à sola do sapato. Sem dobras nem ondas. Recto como a face empedrada dele. Enquanto vergo o cotovelo para levar o pedaço de lagosta amputada à boca
- garfo na mão direita, sempre à bulha com a norma -
, lembro-me das toalhas de papel com altinhos sequenciados, do tapete de plástico aos furos, do copo e do prato separados por toalhetes grosseiros. Esse restinho de elegância e pompa depositada no bom-dia, lá verdadeiro, fazia-me bem. E eu sorria. Sorria porque lá sou feliz. E aqui não. Aqui a norma não me deixa.
Lá fora, sobre os vidros dos carros pretos, abate-se um sol carnudo de burguês.

jtf

5.5.06

VIII

Não se encontra um pouquinho que seja de esperança no tapete que presenteia a entrada da tua casa, agora só tua, Joanna. Calada, como sempre, ouves o Afonso arrepanhar-te o bicho escuro e valente que o orgulho tomou como seu dentro do peito. Fala, fala, fala-te. O ouvido já está azul de tão superlotado. Encher sacos do lixo, encher ouvidos de lixo. Resíduos gasosos de palavras, nefastos de tão fastidiosos, escuros de tão enfadonhos. Lixo em forma de letras, ditas com a convicção da gramática limpa da honestidade com que o Afonso ligava a corda direita, junto à faringe. Joanna, enches o ouvido, chega ao limite do balde, sugeres um café, não é mais do que a oportunidade refrescante de despejar o saco apinhado. Não te recordas. Não te recordas. Por mais que tentes procurar, esconde-se. Tapa-se a vontade que ainda tinhas de esticar um sorriso grande. Ajeitas o cabelo para o prender ao elástico, rabo de um cavalo assanhado, cordas de uma ponte a desabar. Ruir. Bates, com a palma aberta, no mármore duro e branco, banca de uma cozinha em que comiam duas bocas. Agora uma. Lambes os lençóis de uma cama enrodilhada por dois corpos. Agora um. Apenas metade da laranja é comida. Apenas metade do prazer que a casa sentia ao ouvir Bach o é agora. Apenas. Uma cabeça cheia de apenas por todos os lados, todos. Desmorona-se a terra que juntaste em volta do calcanhar dos pés. Enquanto a água ferve na cafeteira sobre o lume em círculo, ferve-te a imaginação no fogo laranja com que costumo atiçar as cigarrilhas de sempre. Desmaiavam pedaços voantes, cinzas sangue sobre o branco do lençol da nossa cama grande, bicicleta de um uso simples, forças conjuntas a gravar nas mãos a sentença sinto-te como minha, toda. Cheira-te na cabeça as Al capone a esvaírem-se em fumo ascendente, tão ascendente que ainda te habita os neurónios. Agora que o fumo do tabaco já não sobe pelas narinas mas desce pelo imaginário já distante. Já remoto. Agora que já discutiste, berraste, choraste lágrimas de dispensada, de traída. Já remoto. Agora que já vivo com a outra. A outra que te roubou o cheiro a fumo, fumo em forma de felicidade. Em forma de vida normal. Cheiro a vida, vida sonhada aos dezanove anos, vida montada em puzzle, em peças. A peça que tinha o meu H de Henrique escrita na face desapareceu. Fugiu. Abalou. Impludiu.
Já remoto.

jtf